Por Arthur Bandeira
O Inventário da Rapina é o título de um filme do cineasta Aloysio Raulino e que me veio à mente neste triste episódio do incêndio que aconteceu no dia 29 de julho de 2021 na unidade da Vila Leopoldina da Cinemateca Brasileira.
Entre os fortes diálogos do filme, Aloysio diz – Alguns mortos incomodam demais. Mortos que ninguém quer saber, ninguém quer ver!
Raulino foi aluno de Paulo Emilio Salles Gomes, o idealizador da Cinemateca Brasileira, e também da sua ex-esposa, a cineasta Tania Savietto, que foi diretora da Cinemateca no início dos anos 90, quando a sede foi transferida do Parque Conceição para o antigo Matadouro Municipal na Vila Mariana, por uma concessão da prefeitura de São Paulo.
Como relembra Wagner Carvalho, que trabalhou com a Tania Savietto, a Cinemateca tinha condições bem precárias neste início de Vila Mariana: uma sala para o trabalho da equipe e alguns galpões sem janelas e muito mato.
Não existia local pra guardar o acervo nem recuperar os filmes. Também não tinha sala de cinema e a solução foi assumir um cinema em Pinheiros (Cine Fiametta) onde a Sala Cinemateca funcionou por alguns anos.
Foi neste período que a Cinemateca ganhou por doação o espaço da Vila Leopoldina. Wagner diz que a Cinemateca Brasileira tinha 8 funcionários contratados pelo governo federal e mais um apoio da SAC (Sociedade dos Amigos da Cinemateca). Nos anos 2000, com a SAC e a Lei Rouanet, ela conseguiu construir na sua sede duas salas de cinema e um local de projeção exterior, todos da mais alta qualidade, e que teve um período próspero em eventos, mostras, festivais e cursos.
Mas a trajetória da Cinemateca Brasileira sempre foi de grande luta. Paulo Emilio, em 1935, se exila na França depois de ter participado da Intentona Comunista e lá conhece a Cinemateca Francesa e a figura de Henry Langlois e fica fascinado com a idéia de um museu de imagens. Em 40, Paulo Emilio volta ao Brasil e funda o Clube de Cinema de São Paulo com colegas de USP, Décio de Almeida Prado e Antonio Candido, que foi fechado no mesmo ano pelo DIP do governo Getúlio Vargas, mas logo depois volta a funcionar de forma clandestina por um período até se associar ao Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Em 1956 se desliga do MAM e o clube se transforma em Cinemateca Brasileira, sociedade sem fins lucrativos com a intenção de preservar o patrimônio cinematográfico nacional e universal.
Muitos golpes foram desferidos contra a instituição como o da ministra da Cultura, Marta Suplicy, que mudou a gestão para a Associação de Comunicação Educativa Roquete Pinto (ACERP). O primeiro grande golpe do governo genocida foi quando o Waintraub rompeu o acordo com a fundação Roquete Pinto que cuidava da TV Escola e da Cinemateca Brasileira.
Estrangulamento econômico
Paulo Emilio dizia que existe o bode expiatório mas também existe o bode exultório, no caso. A pessoa que está na presidência convocou a atriz Regina Duarte para cuidar da entidade, e foi um fiasco constrangedor.
O fogo que aconteceu neste julho foi mais um dos desastres ocorridos na instituição. Tem gente que afirma que a Cinemateca só vira notícia quando tem incêndio. De acordo com um documento recém-publicado, as possíveis perdas envolvem:
Do acervo documental: grande parte dos arquivos de órgão extintos do audiovisual,como parte do arquivo da EMBRAFILME – Empresa Brasileira de Filmes S.A. (1969 -1990), parte do arquivo do Instituto Nacional do Cinema – INC (1966 – 1975) e CONCINE – Conselho Nacional de Cinema (1976 – 1990), além de arquivo ainda em processo de incorporação. Para evitar que novas enchentes atingissem o acervo, parte desses materiais foi transferida do térreo para depósitos climatizados no primeiro andar, a área atingida pelo incêndio.
Tal medida ocorreu após uma grave enchente em fevereiro de 2020. Parte do acervo de documentos oriundo do arquivo Tempo Glauber, do Rio de Janeiro, inclusive duplicatas da biblioteca de Glauber Rocha.
Do acervo audiovisual: parte do acervo da distribuidora Pandora Filmes de cópias de filmes brasileiros e estrangeiros em 35mm. Matrizes de cópias de cinejornais únicos, trailers, publicidade, filmes documentais, filmes de ficção, filmes domésticos, além de elementos complementares de matrizes de longas-metragem, todos estes potencialmente únicos.
Essa parcela do acervo já havia sido afetada pela enchente. Parte do acervo da ECA/USP – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, da produção discente em 16 mm. e 35mm. Parte do acervo de vídeo do jornalista Goulart de Andrade.
Mas a Cinemateca Brasileira é fênix.
Arthur Bandeira é jornalista, produtor cinematográfico e diretor da TV Assim de São Paulo
Este link é do Grupo Basavisi acompanhando o filme A Carne e o Diabo com Greta Garbo no Festival do Cinema Silencioso realizado em 2010