O domínio dos não transantes

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Por Léo Bueno

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Nos anos 90 eu e uns amigos pulamos uns carnavais na praia, em Caraguá e São Sebastião. Bem legais, muita gente, era preciso fugir das brigas, mas éramos xófens, dava tudo certo.

Uma coisa, porém, me incomodava. Em vez de bom samba, 95% da música que tocavam era axé. Inclusive uma dessas festas foi com show da Banda Eva antes do sucesso.

Eu não gostava de axé. Não gosto ainda. Axé é a música pop surgida no rastro da world music, a patética tentativa de alguns astros internacionais – David Byrne, Paul Simon, Sting – em fazer uma mistureba definitiva de ritmos. Algo como a ‘aldeia global’ do McLuhan, só que tocada nas rádios. Deu ruim.

Óbvio, meu problema com a axé não era com o ritmo ou o timbre dos vocais, mas com a pobreza de conteúdo. O samba sempre teve seus representantes populares, mas também soube ser relevante. As marchinhas eram românticas, eram irônicas, políticas, metafóricas. O samba-enredo é uma estrutura complexa, uma mini epopeia que tem que caber no espaço de uma canção.

Já o axé, aquele lá, queria ser uma abelha pra pousar na sua flor e pedia para abrir a rodinha, meu amor. E tinha as coreografias. Você chegava num lugar LOTADO de gente que, a cada música, fazia exatamente os mesmos movimentos, como num batalhão, e quando você não sabia os movimentos era você o excluído, o por fora.

Bom, é assim até hoje, e piorou, e não só no axé. Aliás, com o TikTok, é um pouco assim na vida. Saem-se daí considerações sobre a pasteurização da cultura, a robotização da vida etc..

Acho que já dá pra ter uma ideia da minha nenhuma simpatia com a arte da Ivete Sangalo, né?

Por isso nunca hei de perdoar a Baby do Brasil por me fazer ficar do lado e vibrar tão empolgado com a Ivete.

Porque pior, muito pior, incomparavelmente pior do que a tabula rasa a que a indústria pop costuma reduzir o Carnaval é o conceito de destransar os transantes a que o fanatismo religioso tenta nos reduzir.

Tem esse texto rolando por aí que diz que a ex-Nova Baiana faz parte agora de uma corrente evangélica dedicada a atingir o domínio sociopolítico por meio da interferência discursiva em eventos mundanos, tais como o trio elétrico de Sangalo.

Não sei se é real, pouco se me dá. Na verdade, acho difícil que quem está pulando Carnaval dê a mínima atenção para a propaganda do apocalipse. Tem gente que bebe tanto que em algum momento o apocalipse até seria bem-vindo.

Não é de hoje que fanáticos tentam jogar água na cerveja da folia. Existe uma raiz psicológica muito precisa nesse problema. Psicólogos devem ter uma definição técnica para ela.

Como não sou psicólogo, vou chamá-la de síndrome do barrado. É aquela inveja nada saudável que o sujeito que não está na festa tem do outro, o que está se divertindo. É o ódio que os incels têm dos namoradores e que os red pills têm das mulheres em geral.

Claro, uma pessoa como a ex-Consuelo não se encaixa muito bem no estereótipo. Nos exageros do Carnaval – drogas e sexo, pra começar – ela é livre docente, figura histórica, aliás até mesmo anedótica.

A cantora vem de outra cepa, a da convertida pelo exagero. É aquela que estava com o pé tão fundo na jaca que hoje considera dever a deus e à igreja o fato de estar viva.

Em tese gente assim deveria merecer uma mínima solidariedade. Mas contexto é tudo e neste caso, sinto muito, não dá pra perdoar.

Porque nós estamos vindo de uma década inteira de domínio dos não transantes, e por causa disso mesmo foi a pior década de nossa vida.

Pois o neofascismo se trata exatamente disso: o domínio dos barrados no baile. A assunção dos não transantes.

Foi quando aquele sujeitinho asqueroso que não namorava ninguém – porque é asqueroso – tomou o poder de assalto e decidiu que, se ele não podia, ninguém mais poderia.

Aquele elementinho pegajosinho e nojentinho que até consegue casamento, mas por causa do dinheiro e por causa do poder e que nunca vai saber o que é beijar na boca na rua com felicidade porque você está atraído por uma pessoa e ela por você.

Não por acaso foram tempos de comida cara, armamento facilitado, festas oprimidas, mostras de arte atacadas, escândalo carnavalescos e vazio existencial.

É o que acontece quando o rancor, o falso moralismo e o fanatismo começam a ditar como você tem que viver a vida. É exatamente disso que tratou a tentativa de Baby de estragar o bloco da Ivete. Perto dessa gente, coreografia de Carnaval com música ruim é quase um movimento de libertação.

Espero que os não transantes voltem a ser ignorados no Carnaval. Para isso existem os cultos, alguns com pastores realmente vocacionados, em vez de rancorosos. Senão, o único jeito vai ser macetá-los mesmo.

Léo Bueno é jornalista e trabalhou na rádio Jovem Pan de São Paulo e no Diário do Grande ABC, além de sites e revistas.

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