Por Elias Pereira
I – Caçada
E assim eu resolvi entrar no cinema para assistir Barbarella e me extasiar com a belíssima fantasia da proibição das guerras e de um lunático que ameaçava quebrar a paz que já durava séculos.
Folheara as páginas das revistas que estampavam as cores, movimentos, grafismos, corpos, figurinos, tramas e desnudavam a heroína muito bem equipada de atributos físicos. Trazia a ousadia de mulher forte e livre.
“A vida realmente é diferente quer dizer, ao vivo é muito pior” –, cantava Belchior.
As guerras pipocavam quando me retirei do cinema e vi a quantidade de senhores vestidos de paletós e gravatas escuras, que farejavam as ruas e pareciam falar com a lapela do paletó, mas na verdade cochichavam pelo rádio.
Tintureiros mal estacionados nas calçadas e automóveis frios pouco disfarçados escorregavam pelas vias e meganhas mostravam armas reluzentes e pesadas e muitos deles portavam enormes porretes mais duros e pesados do que tacos de beisebol – esporte popular nos Estados Unidos, em Cuba e na Venezuela.
A batalha veio ao meu encontro quando desci a rua Ceci no bairro do Éden, em São João de Meriti na divisa com a Pavuna.
O casal andava a passos apertados pela rua Grinaldina Moreira enquanto uma moça dirigia um fusca branco dando voltas pela avenida Presidente Kennedy. A patrulha do exército marchava em ritmo de rancho pelas rua Santa Margarida acompanhada do jipe verde oliva. O chofer desceu o chinelo no acelerador e a patrulha desandou em marcha forçada na rua do Imperador, em direção a rodovia Presidente Dutra. O tenente-coronel sentado ao lado do chofer determinava as rotas e o sargento Teco Certo varria as ruas com a metralhadora Browning M2, que catingava o ar de pólvora e esburacava as paredes e muros das casas simples de trabalhadores. Eu desabalei a correr pela rua Délio Guaraná e passei direto pelo locutor que lia ao microfone recados e pedidos musicais que ele atendia pelo serviço de alto falantes:
– Claudio oferece a Marcela como prova de amor e carinho…
O tenente foi até a cabine e intimou:
– Preciso mandar um recado. É urgente.
– E qual é o recado?
– É pra ninguém sair às ruas. Estão proibidos cachaceiros, cabeludos, letrados, analfabetos, sambistas, roqueiros, donas-de-casa, maconheiros, proletários e estudantes, protestantes, cristãos e macumbeiros. Hoje o Éden é o inferno.
– Fala o senhor mesmo, então.
Eu me esgueirei pelo beco dos Souzas e cortei caminho a tempo de cruzar com o casal e avisar da presença dos cães.
E desandei a correr em direção a estação São Mateus e consegui embarcar na composição 19-68 a tempo de escapar da vigilância do exército, da polícia militar, da polícia civil e de toda a sorte de facínoras que se aliam a ditadores. Eles apertavam o cerco da Vila Rosali a Costa Barros.
Desembarquei na Central do Brasil e iniciei a caminhada pela Presidente Vargas em direção a Candelária. No cruzamento da rua dos Andradas o fedor de pólvora incensava o ambiente. Passei ao largo de detetives e investigadores frios que apalpavam mendigos e prostitutas e trabalhadores e riam das desgraças, dos andrajos, das marmitas pobres e da falta de defesa dos infelizes.
O fusca branco passou por mim com a motorista pisando fundo e quando olhei para trás vi o jipe do exército deslizando pelas calçadas. O tenente gritava e gesticulava para as pessoas saírem das ruas e Teco Certo despejava rajadas para todos os lados, em meio aos gritos desesperados dos pedestres que se atiravam ao chão e buscavam proteção contra as balas.
O jipe entrou desembestado na rua Uruguaiana atrás do fusca que balançava frouxo e os dois veículos voltaram a avenida Presidente Vargas cantando pneus com o fusca cinquenta metros à frente do carro militar.
Mas do alto da catedral Ártemis vigiava atentamente os movimentos… Ela ergueu suavemente os braços até a altura do peito e retesou o arco e apontou para a avenida e esperou que o veículo verde oliva ficasse de frente…
Ártemis disparou…tchouf…
A flecha alcançou o coração do tenente que tombou sobre o chofer. O veículo ficou desgovernado e a metralha de Teco Certo cuspia fogo e rodopiava na traseira do jipe sem direção que se chocou estrondosamente contra as paredes de granito do Banco do Brasil e explodiu em chamas.
A chuva fina lavava de leve o sangue espalhado pela avenida Presidente Vargas. Eu perdi de vista o casal e o fusca…
Continua na próxima postagem…
Elias Pereira é músico e escritor