E Nara tinha razão

Por Jorge Antonio Barros

No dia 19 de janeiro agora Nara Leão completaria 80 anos de idade. Foi esse o mote encontrado pelo Conversa.doc, de Pedro Bial, para produzir e exibir pela Globoplay um dos melhores documentários sobre artista da MPB, “O canto livre de Nara Leão”, mesmo título de um disco dela, de 1965.  O filme é produzido pelo neto de Nara, José Bial, filho de Pedro Bial com Isabel Diegues.

Aparentemente doce e frágil, Nara na verdade era um furacão de talento, criatividade e emoção. É o que se pode concluir da série documental de cinco capítulos que está fazendo tanto sucesso e que já está provocando ataques bolsonaristas nas redes sociais, ressuscitando Nara.

Resgatado pelo diretor da série, Renato Terra, um post no Twitter diz o seguinte:

“Essa daí tava sumida e resolveu soltar uma frase falando mal do Exército brasileiro pra lacrar e alguém notar que ela tá viva.  Já teve seu momento de excelente cantora. Mas o que ela sabe de segurança nacional e Forças Armadas?”

Irmã da famosa jornalista Danusa Leão — que não aparece no filme — Nara Leão morreu em 1989, aos 47 anos, de um tumor cerebral, mas, na verdade, continua viva na memória daqueles que a conheceram e conviveram com ela, como Cacá Diegues – seu marido e pai de seus dois filhos – Roberto Menescal – o eterno parceiro musical – Marieta Severo – a amiga de sempre – e Chico Buarque, uma espécie de discípulo confesso.

E não apenas isso. Nara entrou definitivamente para a história da cultura brasileira. Ela fez história, ao ser pioneira da Música Popular Brasileira, a MPB, depois de ter participado da criação da Bossa Nova, num apartamento de frente para o mar, em Copacabana. Anfitriã dos encontros musicais que resultaram na Bossa Nova, no fim dos anos 1950, Nara tornou-se a musa do novo ritmo. Depois, partiu para fazer uma ponte inédita entre o asfalto e a favela, cantando com os grandes compositores do morro, como Cartola e Nelson Cavaquinho.

E então concluiu que a arte teria que servir à boa política, engajando-se na chamada música de protesto, nos anos 1960. Foi uma das cabeças do histórico espetáculo “Opinião”, música de Nara, João do Vale e Zé Keti, cujo show lançado em dezembro de 1964 botou na roda cultural a oposição ao regime militar.

Nara ganhou ainda mais evidência ao desafiar os milicos, numa entrevista publicada em 22 de maio de 1966 no Diário de Notícias, apenas dois anos depois que os militares deram um golpe que botou o Brasil no caminho da direita.

“Esse Exército não vale nada”, afirmou a cantora, que começou então a ser perseguida pelo regime. Em 1968, partiu para o exílio em Paris.

Na ocasião da famosa entrevista, Nara recebeu o apoio de ninguém menos que o poeta Carlos Drummond de Andrade, que publicou no Correio da Manhã o poema “Apêlo” (leia a íntegra ao final do texto).

O Brasil de Nara começou como um barquinho ao cair da tarde, tornou-se um mar revolto de quarteladas, violência política e falsa legalidade forjada por atos institucionais e retomou a democracia sem rumo e sem punição para os assassinos da ditadura. Nara morreu em 1989 antes de ver o país ser tomado por uma onda conservadora, com a eleição de Collor, e seu impeachment três anos depois.

Se Nara estivesse fisicamente entre nós, com certeza seria uma das vozes mais firmes contra a nova guinada que o país deu para a direita, alimentado pela burrice e pelo negacionismo que mata.

APELO
De Carlos Drummond de Andrade

“Meu honrado marechal
Dirigente da nação
Venho fazer-lhe um apelo
Não prenda Nara Leão

Soube que a Guerra, por conta,
Lhe quer dar uma lição. Vai enquadrá-la
– esta é forte –
Artigo tal… não sei não

A menina disse coisas
De causar estremeção?
Pois a voz de uma garota
Abala a revolução?

Nara quis separar
O civil do capitão
Em nossa ordem social
Lançar desagregação?

Será que ela tem na fala,
Mais do que charme, canhão?
Ou pensam que, pelo nome,
Em vez de Nara, é leão?

Se o general Costa e Silva,
Já nosso meio-chefão
Tem pinta de boa praça,
Porque tal irritação?

Ou foi alguém que, do contra,
Quis criar amolação
A seu
Artur, inventando

Este caso sem razão?
Que disse a mocinha, enfim,
De inspirado pelo cão?
Que é pela paz e amor
E contra a destruição?

E, depois, se não há preso,
Político na ocasião,
Por que fazer da menina
Uma única exceção?

Ah, marechal, compre um disco
De Nara, tão doce, tão
Meigamente brasileira,
E remeta ao escalão;

Ao ouvir o que ela canta
E penetra o coração,
O que é música de embalo
Em meio a tanta aflição.

O gabinete zangado
Que fez um tarantantão,
Denunciando Narinha,
Mudava de opinião.

De música precisamos
Para pegar o rojão,
Para viver e sorrir,
Que não está mole não.

Nara é pássaro, sabia?
E nem adianta prisão
Para a voz que pelos ares,
Espalha sua canção.

Meu ilustre general,
Dirigente da nação,
Não deixe, nem de brinquedo,
Que prendam Nara Leão.

FOTOS:
Nara Leão e seu violão

Fac-símile do Diário de Notícias, com a entrevista que disparou contra o regime militar

Reprodução do Twitter, em que bolsonaristas afirmam que Nara está viva

 

Jorge Antonio Barros é jornalista e editor do Quarentena News, onde o artigo foi publicado originalmente.

Obs. Os textos aqui reproduzidos são de responsabilidade dos autores.

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