Por Antonio Soares*
Tenho por costume não excluir bolsonaristas de minhas redes sociais e nem do círculo de amizades ou mesmo deixar de dar bom dia a esses serviçais da ideologia raivosa, ressentida, agressiva, tosca ou cínica. Na verdade, o bolsonarista típico é aquele que sente saudade de um mundo que nunca existiu em nenhum tempo, mas ele aciona a memória que colore o passado e imagina que os aventureiros ou heróis, empunhando o cajado da moralidade e da anticorrupção, trarão de volta esse mundo imaginário.
Os bolsonaristas não podem ser homogeneizados. Eles são diferentes em intenções e vínculos com os desvarios do presidente. Tal como Marx que talvez não fosse marxista, Bolsonaro não é, ele mesmo, bolsonarista. Bolsonaro sempre foi um funcionário público da política. Como um funcionário público improdutivo, nunca fez nada de significativo em quase 30 anos de sucessivos mandatos. No Exército, foi ainda pior e todos sabem disso. Ele foi aquele tipo de deputado que raramente faltava às sessões, mas nada além disso. Sua inoperância no Congresso Nacional se deve à falta de ideias, incompetência e preguiça.
Sua capacidade de construir acordos sempre foi inexistente. Ele era tratado como um outsider mesmo pelos partidos pelos quais passou. Era aquele cara que no almoço ninguém o procurava para sentar à mesa. Mas, definitivamente, Bolsonaro não é bolsonarista-raiz. Ele sempre gastou seu tempo olhando o gordo contracheque de deputado e como poderia tirar mais e mais vantagens do cargo. Usou o apartamento funcional para “comer gente” (pelo menos usou um termo de gênero neutro), mesmo tendo residência em Brasília. Nunca se furtou a usar passagens aéreas e carro oficial para seus interesses privados. Como nada produzia politicamente e tinha uma série de cargos à disposição em seu gabinete para nada fazer, ele inventou seu esquema de rachadinha.
O Programa Rachadinha foi seu primeiro programa distribuição de renda, uma espécie de meinha na qual o assessor tirava do caixa, virava e dava para ele a melhor e maior parte. Ele contratava assessores que nada precisavam fazer e nem ao trabalho precisavam ir. A única missão era receber os salários, retirar em média 20% e devolver o restante dos 80% para o fiel contador Queiroz. O famoso distribuidor de cheques para Michele, selecionador de laranjas e chocolates.
Entre os bolsonaristas que conheço, posso dizer que ainda tenho contato com um que é realmente raiz. Serviu ao Exército por opção e saiu como cabo. Um tremendo cabo vibrador, na linguagem do exército; sem nenhum duplo sentido, por favor. Mora no subúrbio, é taxista – aquele ressentido com entrada de serviços do Uber-, tem moto customizada ao estilo Harley Davison, devoto de Nossa senhora de Fátima, participa de clubes de motociclistas de batedores, usa coletinho com caveira, franjas, anéis, bandana e outros adereços de macho alfa, estilo fat bad-boy. Foi a todas as manifestações pró-Bolsonaro de verde-e-amarelo no Rio, assiste todos os “canis de direita” (acho que foi ato falho do teclado por isso mantive) e repete todos os mantras do bolsonarismo que misturam deus, família, armas, pátria, anticomunismo, globalismo, nióbio, cloroquina e outra idiotices. Para ele, por exemplo, Moro é um traíra. Ele tem orgulho em declarar, em alto e bom som: “Sou de direita! Ele é aquele pode ser chamado, com todo o respeito, de gado “puro sangue”. As camadas populares, quando apoiam o cão, também são fiéis, em espírito de corpo, como esse tipo acima descrito.
Existe o bolsonarista classe média-ressentida com as mudanças que passaram aos seus olhos e nada puderam fazer ao ver a banda passar cantando coisas de amor. São herdeiros do udenismo que nunca deixou de existir em nosso meio. Não aceitam cotas para universidade, acreditam no mérito (independentemente do local de partida dos competidores), são racistas (caridosos) que possuem até amigos negros, dão as roupas usadas “quase novas” para as empregadas e acham que a questão das identidades sexuais (LGBTQIA+) deveria permanecer no armário, no privado.
Foram e continuam lava jatistas. São ingênuos porque acreditam que pode existir governo sem qualquer nível de corrupção. Não vão aprender que a democracia é sempre o segundo melhor sistema de governo, porque o primeiro não existe (Karl Popper). Não aceitam o fato que a democracia é um processo sempre em construção, é lento, conflituoso e que depende da participação de todos na construção do “concerto das diferentes vozes”. Mas, preferem acreditar na antipolítica e que as soluções para tudo são de natureza técnica. São alinhados ao idealismo positivista sem terem consciência.
Não se conformam com a absolvição do Lula e com a suspeição imposta a Sérgio Moro como ex-juiz, ex-ministro, ex-pleiteante ao STF, ex-consultor da Alvarez & Marsal e atual pré-candidato à presidência da República; o grande admirador da cantora francesa “Édith Piá”. Esses bolsonaristas são caridosos com os asilos e campanhas das igrejas, mas não toleravam o Bolsa Família porque estimularia a preguiça e o não-trabalho. Nunca se conformaram de ter como presidente da república um ex-torneiro mecânico e ex-líder sindical que traz na sua eloquência discursiva os traços da classe social de onde surgiu.
Bolsonaro não seria o presidente que gostariam ter para “chamar de seu”. Pois, não era um Carlos Lacerda que encantou seus pais conservadores com aquela empolgante retórica. Não era o presidente “gente boa” que foi o general Médici – apesar do período mais duro da repressão política e do emprego da tortura no Brasil. Bolsonaro era o que “temos para hoje”, em 2018. e vinha com Paulo Guedes, já que Amoedo, outro adepto da antipolítica, não decolou.
Bolsonaro era uma espécie de “Geni” para vingar esses anos de modesto avanço das causas progressistas que o PT abraçou; era uma forma de punir a corrupção que, para eles, só existiu nessa escala nos governos petistas. Fazem parte de uma suposta classe média esclarecida com nível superior que tem muitos médicos, advogados e engenheiros em suas fileiras, são tementes a Deus, possuem santinho no cordão de ouro, mas adoram assistir vídeos de “CPF cancelado” pelo WhatsApp.
Com o desastre da gestão de Bolsonaro e do herói Paulo Guedes, se calaram, se vacinaram e agora começam, de forma ainda envergonhada, a construir racionalizações sobre a possiblidade de apoiar o juiz parcial Sérgio Moro. Já ouvi de um deles que Moro ganhou esse dinheiro da empresa de consultoria americana Alvarez & Marsal com trabalho honesto. Só é enganado quem quer. Está na cara que esse emprego ou concessão de sociedade, por um ano, foi o pagamento (lavagem de dinheiro) pelas informações privilegiadas que o suspeito juiz forneceu para o escritório que atuava como administradora judicial da recuperação da Odebrecht, empreiteira investigada pela Lava Jato e destruída pelo Moro.
Temos ainda o bolsonarista cínico que vota no Bolsonaro ou em qualquer um que não seja uma ameaça para mudanças no seu padrão de vida. Tenho um amigo empresário que tem lancha, casa de praia, mora em condomínio de luxo em Sampa e trabalha com vendas para empresas públicas e privadas. É aquele tipo de empresário que vive como o personagem Leonardo, de “Memórias de um Sargento de Milícias”, isto é, se equilibrando, provavelmente, entre a “ordem e a desordem” nas negociações. Dez por cento ali, uma pequena sonegação de impostos aqui e os negócios caminham de vento em popa. Tem pavor do PT e de qualquer partido mais à esquerda pelo medo que a sociedade se torne mais igualitária. O medo é que os caras do andar de baixo comecem a mexer com privilégios e conquistas que ele adquiriu com o trabalho e com os pequenos expedientes do mundo das vendas e intermediações de negócios. Ele é o tipo gozador e cínico que diz que “tudo pode mudar, desde que nada mude”. Seu esporte predileto é falar mal do PT e do Lula e comer churrasco com a carne dos irmãos Batista, espécie de ídolos para ele.
Ter bolsonaristas de estimação pode parecer uma espécie de sadismo e de masoquismo espiritual, mas penso que eles me ajudam a enxergar a “vida como ela é” para além da bolha que vivemos quando conversamos apenas com nossos iguais.
*Antonio Soares é professor titular da UFRJ
Arte: Claudio Duarte
Obs: Publicado originalmente na página Quarentena News.
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