Por Beatriz Herkenhoff
com a colaboração de Maria Anita Brasileiro Falcão
Há algum tempo tenho criado com outras mulheres espaços de trocas sobre o nosso jeito de ser. Pedimos socorro quando nos sentimos fragilizadas e desamparadas diante das adversidades da vida. Damos colo, uma palavra amiga, uma oração. Pensamos em alternativas e nos tornamos cúmplices na busca de um olhar diferenciado sobre os acontecimentos.
Maria Anita Brasileiro Falcão está entre essas amigas, que caminham de mãos dadas comigo. Ela foi minha aluna no Curso de #ServiçoSocial nos anos 1996. Desde o nosso primeiro contato houve uma identidade e eu soube que teria muito a aprender com ela.
Decidimos escrever essa crônica sobre a realidade da mulher negra. Eu não poderia fazer isso sozinha.
“Pois, a cabeça pensa a partir dos lugares onde estão fincados os seus pés”
Por isso, ninguém melhor do que Anita para partilhar a sua história e de milhares de mulheres negras que vivem num contexto desfavorável de pobreza, preconceito, baixa escolaridade, violação dos direitos humanos, dupla jornada de trabalho, entre outros. Mulheres que inventam e reinventam formas de sobrevivência para si e para suas famílias.
#ConceiçãoEvaristo, destacada em negrito ao longo desse texto, nos ajudará a dialogar com essa realidade. Para ela:
“O sujeito da literatura negra tem sua existência marcada por uma relação com outros sujeitos.”
Temos um sujeito que ao falar de si, fala dos outros, e ao falar dos outros, fala de si. E assim acontece quando ouvimos Anita:
Sou uma mulher negra de periferia. Filha de Maria da Penha Brasileiro Falcão e Dario Lira Falcão. Neta de Dona Anita, na verdade Almerinda. Lembro muito da minha avó, uma pessoa muito simples, analfabeta que carregava a marca da alegria.
Ela gostava de casa cheia, de pessoas jovens, alegres e adorava ouvir nossas histórias. Era uma mulher que agregava.
Ainda que muito pobre, adorava servir café com bolinho de chuva para as visitas e para os trabalhadores braçais da Prefeitura. Era uma das velhinhas mais querida do #MorrodaFonteGrande.
Depois do casamento minha mãe tornou-se lavadeira. Era uma mulher muito brava. Algumas questões eram inegociáveis para ela, que não admitia desrespeito com os mais velhos, agressão entre irmãos e fofocas.
Excelente cozinheira, preparava comidas deliciosas, temperadas com precisão. Desenvolveu tecnologias próprias para pendurar roupas no varal, para economizar gás de cozinha, para fazer café e muito mais.
Foi empregada doméstica até se casar, depois tornou-se lavadeira de roupas de famílias da classe média. Vislumbrava um futuro diferente para os filhos, assim como meu pai, fez questão que os filhos estudassem.
Conceição Evaristo afirma que as mulheres negras se relacionam com as famílias abastardas a partir do fundo das cozinhas alheias. Aprendem desde cedo a arte de cuidar do corpo do outro, lavar e passar suas roupas, fazer suas refeições, cuidar de suas crianças.
Anita continua narrando:
Meu pai morreu cedo em função do uso abusivo de álcool. Quando o estado de saúde dele se agravou, minha mãe nos surpreendeu assumindo o controle financeiro da família. Vale registrar que o recurso foi muito melhor utilizado.
Dona Maria, como era chamada, tinha apenas três anos de escolaridade, mas escrevia cartas, bilhetes, fazia listas de compras. Deixava recados escritos e acompanhava as lições de casa dos filhos, mesmo sem entender muito o conteúdo das lições.
A história de vida dela era de ausências de coisas básicas como moradia, alimentação adequada, educação e muito preconceito racial. Meus avós viviam no interior do estado, ele trabalhava em uma fazenda onde o patrão também era o dono do único armazém local.
Minha mãe contava que o salário do meu avô não pagava a conta do armazém, dessa forma, além de não receber dinheiro em espécie, estava sempre devendo. Cansado dessa vida meu avô juntou a família e veio a pé para #Vitória, ES, em busca de uma vida melhor.
“Entre a dor, a dor, a dor, é ali que reside a esperança”.
Anita continua …
A maioria das mulheres da minha família são matriarcas no sentido de conduzir a própria vida e da família nos momentos de dificuldade. Outra característica dessas mulheres é o de reunir pessoas e festejar a vida.
Como afirma Conceição Evaristo, o protagonismo da ação cabe à figura feminina, símbolo de resistência à pobreza e à discriminação.
Talvez, a minha história pudesse ser outra se não fossem as crises de asma. Essas crises duravam dias e me causavam muitas restrições. O fato de não conseguir respirar adequadamente me colocava num lugar de inferioridade, minha autoestima era muito baixa.
Como não podia fazer muitas coisas – nem sempre brincar e às vezes nem ir à escola – estudava em casa com meus livros ou às vezes meu pai ia a escola pegar os “deveres” pra eu fazer em casa, a gene do ensino remoto. Lembro que meu pai tinha muito orgulho em dizer que apesar dos problemas de saúde eu gostava de estudar.
Meu pai sempre dizia isso em reuniões de família. Quando ele fazia esses elogios, cheio de orgulho (e eu também), uma tia avó retrucava:
“Não sei pra que gastar dinheiro para ela estudar, além de ser mulher, é preta e doente”. A fala recorrente dessa tia me causava mal estar, porém o orgulho do meu pai me mantinha firme.
Para mim não havia outra alternativa além de estudar, era o que eu tinha para oferecer ao mundo, porque achava que não tinha a beleza das minhas amigas e era muito pobre. Minha autoestima era tão baixa que eu não passava sozinha perto de meninos porque achava que iam rir de mim.
Hoje, eu me considero uma mulher negra bem sucedida. A autoestima ainda pode melhorar, mas não é a imagem que externalizo. E de onde retirei esses ingredientes para ser quem eu sou hoje? Certamente da minha ancestral mais próxima, a minha mãe.
Quando atravessei a antiga Passarela de acesso à #UniversidadeFederaldoEspíritoSanto eu estava acompanhada de todas as minhas ancestrais: da minha mãe, das minhas tias e todas as mulheres da comunidade que me ajudaram a me constituir como pessoa. Na sala de aula eu realizava a teoria com as questões do cotidiano que eu compartilhava na minha comunidade.
Filha de líder comunitário, trazia as ações focalizadas, que eram a forma que a assistência social se apresentava na época: campanha do cobertor, do filtro, do ticket de leite. A pobreza se perpetuando por várias gerações.
Os estudos são formas de explicar muitas coisas que acontecem na vida.
Como Anita, cada vez mais mulheres criadas em ambientes não letrados estudam e rompem com a passividade imposta pela precariedade da vida. Cresci vendo a vizinha que acolhia as crianças em seu quintal, era a mesma que deu o primeiro banho em todas as pessoas que hoje tem menos de 45 anos.
A solidariedade para o cuidado com as crianças, as novelas assistidas nas salas dos vizinhos. Outros tempos, outras sociabilidades.
Minha mãe lavava roupas na fonte quando faltava água. Era muito comum ficarmos sem água por semanas no verão. Nós ajudávamos a levar as roupas sujas, voltávamos com baldes de agua e no fim do dia íamos buscar as roupas molhadas. Eram muitas meninas juntas.
Sexo era um assunto proibido em casa, então nesse trajeto conversávamos sobre sexo. Uma vez falei sobre isso com a escritora e atriz #SuelyBispo, e ela fez uma poesia chamada Fonte Grande erótica.
Lembro da alegria das mulheres lavadeiras que passavam o dia lavando as roupas sujas das patroas e outro dia inteiro passando a ferro. Era um tempo de tranquilidade, quase todas as fontes eram na parte alta, dentro da mata. Por isso o nome do bairro é #FonteGrande.
Hoje, vejo as filhas e netas das mulheres que lavavam roupas como a minha mãe vivendo outro momento. Parte superou a pobreza extrema, outras continuam reproduzindo o ciclo com o agravante da violência.
Elas veem seus filhos e netos, jovens negros, serem assassinados, algumas vezes perto delas. É o sofrimento da moradia precária, da insegurança alimentar e de outras ausências.
Entretanto, a força habita essas mulheres, a gente vê esse sofrimento, acha que elas vão sucumbir e logo depois, lá estão elas, sorridentes, solidárias, integrando algumas frentes de apoio a outras mulheres iguais. Essa força me energiza e me fortalece, me torna cada vez mais orgulhosa de pertencer a esse território.
A escrita de Anita está comprometida com a potência da vida, com a esperança de um mundo mais justo e igualitário. Ela resgata sua ancestralidade, o protagonismo de mulheres fortes, corajosas, ousadas que rompem com o contexto de subalternidade.
Que possamos nos solidarizar e aprender com elas…
Que suas causas e suas lutas sejam também nossas.
Maria Anita Brasileiro Falcão é Assistente Social. Pós Graduada em Relações étnico raciais. Mulher Negra. Sambista. Mãe, avó, quase bisavó.
Beatriz Herkenhoff é doutora em serviço social pela PUC São Paulo. Professora aposentada da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo).
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Viva Maria Anita Brasileiro Falcão
Gratidão Luiz Antônio, por fortalecer a minha identidade.
Viva Maria Anita Brasileiro Falcão
Gratidão Bia, minha amiga. Você me estimula as minhas potências.