Construir Resistência
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A vida após o crack – por Luiz Galvão

Por Luiz Galvão

Resolvi fazer aqui alguns relatos sobre minha experiência com o uso do crack e algumas das suas consequências, por ser uma oportunidade e motivação para mostrar e, assim, tentar levar a mensagem de esperança e sobriedade, tanto para quem se vicia, como para familiares ou amigos que convivem com algum dependente químico.

Seja a dependência por drogas ilícitas (cocaína, crack, LSD, doce nas baladinhas etc) ou lícitas, como por exemplo álcool e remédios, há também outros tipos de vícios, compulsão e obsessão. Pode ser por comida, chocolate, sexo, jogo, etc. Ou o TOC, transtorno obsessivo compulsivo.

A única saída da doença da “adicção” (ser escravo de algo) é a admissão e aceitação. Com certeza é o primeiro passo. Admitir a derrota e que a vida estava descontrolada.

No caso específico do usuário de crack, é muito maior o julgamento, hipocrisia e preconceito da sociedade. O viciado em crack é considerado como uma espécie de fim da linha no trajeto da dependência química, o que reforça o “estigma”, por ser o crack associado à população de rua. Mesmo que muitos das classes média e rica já estejam bem envolvidos. Para estes, há clínicas caras de tratamento. E nenhuma política pública de Saúde. O que sinto também é que a sociedade “aceita”, “fecha os olhos” para os estragos que a cocaína e o álcool causam. Existe uma certa “normalidade” quanto a isso.

Para quem não acreditar, é só frequentar as reuniões de grupos das irmandades de Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos, Jogadores Anônimos, Neuróticos Anônimos, entre outros, de autoajuda com Os Doze Passos. Tem até um grupo para “Mulheres que Amam Demais”. Os relatos nesses grupos são de arrepiar, de destruição da vida.

A questão é a degradação a curto (crack) ou a longo prazo (outras drogas como o álcool).

Até tenho mais histórias não muito “agradáveis” para contar.  Não diferentes de muitas outras que li em livros, jornais e na internet.  Apenas eu não matei, roubei ou fui pra cadeia. Porque “ainda” não aconteceu isso? Porque parei antes.

A “doença” do ainda

Existe uma outra doença que acontece quando alguém insiste em usar drogas e beber demasiadamente e, por muito tempo, começa a ter problemas: É a “doença do ainda”. Não reconhecer a tempo que o fundo do poço pode estar próximo.

– Eu bebo, mas “ainda” não bato na esposa. “Ainda” não bati o carro. “Ainda” não fui atropelado.

-Eu uso drogas, mas “ainda” não roubei, “ainda” não furtei ou fui preso.”

Essas justificativas para o uso contínuo são mortais na vida de uma pessoa portadora da doença da adicção. Uma doença espiritual, mental, emocional e física que muito provavelmente termina em três Cs. Caixão, Cadeia, Clínica Psiquiátrica.

Quando um dependente é excluído em seu ciclo de amizade e da família, ainda mais difíceis serão as suas chances de recuperação. O papel da família é mais do que fundamental e, quase sempre, o ponto principal para o início de uma mudança.

E essa mudança só acontece se um dependente tem o REAL desejo de parar. O desejo é a base da recuperação. Um dependente químico que não quiser parar de usar (ou beber), não vai parar nunca. “Pode ser analisado, aconselhado, persuadido, pode se rezar por ele, pode ser ameaçado, surrado ou trancado, mas, não irá parar até que queira parar.

A adicção  não discrimina, não importa as drogas que usou, sua raça, crença religiosa, sexo, preferência sexual, ou condição financeira” (terceira tradição NA/AA).

Um dia limpo é um milagre. Só Por Hoje

“Só posso mudar a mim mesmo, aos outros eu só posso amar”. Essa frase está na literatura do NA. Quando amamos a nós mesmos, somos capazes de amar e mudar. ” Diga para você mesmo: Só por hoje meus pensamentos estarão concentrados na minha recuperação, em viver e apreciar a vida sem drogas.

Só por hoje terei fé em alguém de NA, que acredita em mim e quer ajudar na minha recuperação. Só por hoje não terei medo, pensei nos meus novos companheiros, pessoas que não estão usando drogas e que encontraram uma nova maneira de viver, enquanto seguir este caminho não terei nada a temer”

As palavras Só Por hoje são mágicas porque ajudam a se livrar dos ressentimentos do passado, aceitar a realidade atual e não temer o futuro.

Meu contato com os 12 Passos aconteceu quando me internei por vontade própria num Centro Terapêutico no final de 1996. Um senhor que visitava o Centro e estava limpo e sóbrio há vários anos, me apresentou a literatura dos Doze Passos de Narcóticos Anônimos.

Fiquei lá dois meses e quando sai me “internei” na sala dos grupos de Narcóticos Anônimos.

Frequentei as reuniões e ouvia as partilhas, também falava sobre meus sentimentos e minha vida. Diziam que o remédio entra pelo ouvido e sai pela boca e que o ouvido mais próximo de mim era o meu.

Passei quase um ano desempregado, mas limpo e sóbrio. Fazia minhas preces e meditação, porque a doença da adicção tem origens espirituais e emocionais. Quando fiz uma entrevista para trabalhar, o diretor que eu nunca tinha visto, me disse que já sabia das minhas qualidades de caráter e profissional, mas queria saber se eu estava “careta” porque soube por outras pessoas que eu tive problemas com drogas.

Respondi apenas: Só Por Hoje estou limpo. E ele ficou sem entender nada e perguntou: Quer dizer que amanhã você vai usar?  Sem entrar em detalhes apenas disse: Limpo Só Por Hoje há quase um ano, amanhã renovarei meu desejo de continuar limpo. Fui contratado pela franqueza, pois havia três bons profissionais pleiteando a mesma vaga.

Mais será revelado 

“Narcóticos Anônimos oferecem uma vida que é mais do que apenas uma vida sem drogas. Esta maneira de viver não é só melhor do que o inferno que vivíamos: é melhor que qualquer vida que tenhamos conhecido. Encontramos uma saída e vemos que funciona para outros. À medida que construímos o mundo à nossa vontade, nós mesmos progredimos na recuperação, nos tornamos cada vez mais conscientes de nós mesmos e do mundo à nossa volta” NA

O que antes era dor, hoje meus sentimentos são reais, naturais e sem anestesias. Amor, alegria, esperança, tristeza, decepção, entusiasmo.

Substitui o medo pela fé. A espiritualidade é o carro-chefe da sobriedade. Tinha perdido a habilidade de viver, tudo foi reduzido a um estado animal. Meu espírito estava em pedaços.

A recuperação cresce também pela dor e, muitas vezes, uma crise é uma dádiva espiritual, uma oportunidade de experimentar um crescimento espiritual, vivendo limpo, um dia de cada vez.

A gratidão é a chave da liberdade. Ser grato por estar vivo, limpo, pela ajuda dos companheiros, amigos e familiares. Por um Poder Superior entrar na minha vida e eu deixar que ele assuma o controle, porque minhas melhores ideias me levaram nos piores lugares.

Meus filhos sempre souberam por mim, de acordo com a idade deles, tudo o que se passou na minha vida. Agradeço a Deus (aquele que se concebe) porque eles nunca me viram drogado.

Recaída e recuperação

A recaída é uma realidade. Tive várias e quando isso acontecia eu sumia do mapa. Nunca fui trabalhar drogado. Além do que é meio impossível de se conseguir. Uma recaída pode ser a constatação de que algo não estava dando certo na recuperação. Se perceber e fazer uma avaliação diária dos sentimentos e ações ajuda a se manter no caminho. A recaída nunca vem à toa. Só existe uma maneira de se manter limpo e sóbrio: Nunca dar o primeiro trago ou o primeiro gole. A progressão da doença da adicção é lenta, gradual e fatal.

Junto com a prática dos 12 Passos, também procurei outros tipos de ajuda. (aliás pedir ajuda sempre é necessário, quebrar o orgulho, o egocentrismo e egoísmo). A psiquiatra Dra. Monica Zilberman, do Hospital de Clínicas, me ajudou imensamente com medicação adequada e terapia. O mesmo com o Dr. Paulo Zampieri. Procurei psicólogos e fui curtir a minha religião.

Estou limpo e mais importante, sóbrio. Um dia de cada vez.

O Décimo primeiro passo diz: “Procuramos, através de prece e meditação, melhorar o nosso contato consciente com Deus, da maneira como nós O compreendemos, rogando apenas o conhecimento da Sua vontade em relação a nós e o poder de realizar essa vontade.”

O Décimo segundo:  tendo experimentado um despertar espiritual, como resultado destes passos, procuramos levar esta mensagem a outros adictos e praticar estes princípios espirituais em todas as nossas atividades”.

Levar a mensagem faz parte da recuperação.

Uma boa dica para se manter limpo:

EVITAR: Velhos ambientes, Primeiro gole (trago), Pessoas da ativa, Lugares da ativa, hábitos e pensamentos da ativa, Raiva, Ressentimento, Manipular, Isolar-se, Desonestidade, preguiça, Procrastinar, Achar-se melhor ou pior.

PROCURAR: Frequentar reuniões, Um Poder Superior, Falar de si, Amar (se), humildade, Aceitação, Equilíbrio, Ser tolerante, Vivenciar o programa, Partilhar.

Os filhos e o neto do Galvão
Os 12 passos da recuperação
O mantra da recuperação: “só por hoje”

Luiz Galvão Soares é jornalista profissional, formado pela Faculdade Cásper Líbero, com graduação em Convergência de Mídias. Foi repórter, editor, chefe de reportagem nas principais emissoras de TV de São Paulo

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