Por Sonia Castro Lopes
Há bastante tempo o ensino religioso vem ganhando espaço nos currículos das escolas públicas. Mas, atualmente, a máxima “Deus acima de todos”, insistentemente apregoada nos círculos governamentais, parece chancelar uma prática que afeta diretamente o desenvolvimento do espírito crítico dos alunos, além de colaborar para a manutenção de um conservadorismo hipócrita que tende a desqualificar outras crenças religiosas e colocar em xeque a diversidade tão necessária ao espírito democrático.
É dever das escolas confessionais ministrar aulas de religião. Afinal, os pais que colocam seus filhos nessas escolas assim o desejam, trata-se de uma escolha. Mas as públicas jamais devem inserir tal disciplina no currículo nem mesmo em caráter facultativo ou sob a forma de temas transversais e/ou coadjuvantes de outras disciplinas. Não é aceitável uma escola pública usar a religião para inculcar valores, visões de mundo e condutas que não reflitam uma atitude crítica e científica acerca dos conhecimentos ali disseminados.
A escola pública deve ser laica e não pode rejeitar seus alunos por cultos ou religiões praticadas em sua vida comunitária. Não pode adotar nem aceitar preconceitos de qualquer espécie, não pode ser autoritária nem obedecer a uma agenda única de valores. Infelizmente, não é o que vem acontecendo porque hoje mais do que nunca essa escola está servindo à evangelização de crianças e jovens. São orações no início da aula, conselhos e preceitos de “boa conduta”, dificuldade em transmitir conhecimentos sobre a história e a cultura africana (embora isso seja previsto pela Lei 10.639/03, atualizada pela Lei 11.645/08) porque muitos alunos ouvem em suas comunidades religiosas que as religiões de matriz africana são “coisas do demônio.”
Um histórico de luta em defesa do ensino laico
Remontam ao Império as primeiras manifestações parlamentares que reivindicavam a separação entre o Estado e a Igreja Católica (pela Carta Constitucional de 1824 o catolicismo era a religião oficial do país). Uma delas, a Lei Leôncio de Carvalho (1879), propôs que o ensino religioso fosse ministrado fora do horário das aulas nas escolas primárias enquanto nas escolas secundárias seria facultativo para os alunos que não fossem católicos. Entretanto, só foram dispensados dessas aulas os alunos do Colégio Pedro II. Também Benjamin Constant, diretor da Escola Normal da Corte, emitiu em 1883 pareceres em defesa da laicidade da escola pública, mas apenas em 1891 a primeira Constituição Republicana promoveu a separação entre o Estado e a Igreja. O ensino religioso não foi proibido, pois as escolas privadas poderiam ministrá-lo, mas, nas escolas públicas o ensino teria de ser laico.
A década de 1920 no Brasil caracterizou-se por forte turbulência política e ideológica com greves operárias e movimentos militares como o tenentismo que propunha combater o poder das oligarquias. Afastada do controle da educação desde a Constituição de 1891, a Igreja Católica voltou a ocupar espaços e incentivar a prática do ensino religioso. No primeiro governo Vargas, sob a influência do Ministro da Educação Francisco Campos, este voltou a ser adotado nas escolas públicas, ainda que de forma facultativa por meio do Decreto n. 19.941/1931. Em reação a essa medida insurgiram-se os Pioneiros da Educação Nova, destacando-se entre outros Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, signatários do Manifesto de 1932 que defendia uma escola pública, universal, gratuita e laica.
O ensino religioso em caráter facultativo permaneceu nas demais constituições brasileiras e, muitas vezes, os conteúdos da matéria apareciam sob a capa de Educação Moral e Cívica, em especial no período do regime militar. A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1961), bem como a Lei 5692/71 que pautou o ensino durante a ditadura civil-militar havia estabelecido um limite à atuação religiosa nas escolas públicas de ensino de primeiro grau, hoje ensino fundamental. Ela estipulava que esse ensino deveria ser ministrado sem ônus para os cofres públicos. Com o fim da ditadura, durante o período da Assembleia Constituinte, em 1987, diversas entidades culturais, educacionais e sindicais apresentaram a proposta de um “ensino público, gratuito e laico em todos os níveis de escolaridade como direito de todos os cidadãos brasileiros, sem distinção de sexo, raça, idade, confissão religiosa, filiação política ou classe social.”
Por ocasião da promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases (1996) algumas propostas parlamentares pretendiam fazer do ensino religioso “parte integrante da formação do cidadão”, além de atribuir o ônus desse ensino aos cofres públicos . A proposta recebeu críticas dos protestantes históricos — que nesse momento procuravam se distinguir dos pentecostais que já apresentavam grande crescimento — e também de deputados progressistas que defendiam um Estado laico com liberdade religiosa. Contudo, a maioria parlamentar aprovou o projeto de lei em regime de urgência, fato que causou o repúdio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) por entender que feria o direito à liberdade de consciência e de crença, como também o direito ao conhecimento científico, todos previstos na Constituição Federal de 1988.
Na última década vale destacar o Parecer n. 8/2012 exarado pela Câmara Plena do Conselho Nacional de Educação que estabeleceu a laicidade do Estado como um dos princípios que devem pautar a educação brasileira em todos os níveis e modalidades. Ou seja, definiu a laicidade como princípio educativo, ao lado da dignidade humana, da igualdade de direitos, do reconhecimento e valorização das diferenças.
Hoje mais do que nunca, a escola pública precisa de profissionais da educação com formação adequada para lidar com a diversidade ajudando a desconstruir todas as formas de preconceito e discriminação. Precisa ter recursos ampliados para expandir seus espaços de produção de conhecimento seja ele científico, artístico, literário ou esportivo. Precisa, sobretudo, de agentes com consciência profissional, pedagógica e ética capazes de desenvolver práticas verdadeiramente democráticas.