Procissão sob a fria lua cheia

Por Walter Falceta

Ali à frente, segue exangue o companheiro carpinteiro de Nazaré, que ousou desmascarar os fariseus, expulsar os vendilhões do templo e, principalmente, praticar o amor solidário.

Sua mãe vem logo atrás, sob o roxo do luto, misturando o pranto e a prece. Verônica, aqui e ali, entoa seu cântico lamentoso e desenrola o sudário. Nele, a face agredida de um homem do povo.

O que vejo na procissão é o sofrimento de tantas gentes humildes e proletárias, é o desespero de tantas mães que perderam seus filhos para o crime, para a polícia despreparada e para a violência banalizada.

Foi o que aprendi aqui neste mesmo bairro, desde criança, numa época em que nossa Igreja paulistana era regida por figuras humanamente altruístas, como Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom Angélico Sândalo Bernardino.

Esta noite foi noite de reviver a fé em uma verdadeira Teologia da Libertação, mesmo que ela resida somente em mim e noutros poucos fiéis.

Abril tem dessas noites de céu límpido nesta Zona Leste. O vento gelado varre as ruas e chacoalha as árvores. A Lua Cheia ilumina um Pai Nosso e uma Ave Maria. Eu me sinto, paradoxalmente, em comunidade, mas cada vez mais sozinho.

Todas as antigas catequistas já subiram à arquibancada de cima, assim como todos os líderes comunitários, da Conferência Santa Inês, da Conferência Santa Isabel e da Conferência Santa Catarina de Sena, entidades que tanto fizeram pelos vulneráveis da região.

Na caminhada, vendo oscilar as chamas das velas, lembro do Seu Neves, um operário grisalho que guardava os trocados para livrar do sofrimento, um tantinho que fosse, as famílias empobrecidas.

Lembro de vovó Carolina Luíza e de sua labuta na Assistência Social. Recordo do Tio Chiquinho, meu querido padrinho de crisma, sempre pronto a ajudar quem necessitasse.

Em outro tempo, eu carreguei o turíbulo, muito compenetrado e orgulhoso, aspergindo o incenso purificador pelo caminho. Foi nessa época em que cogitei de me tornar padre, ideia estimulada pelo bispo Dom Luciano Mendes de Almeida, depois presidente da CNBB.

Simplesmente, não rolou. Não era para mim, desde sempre anárquico, avesso a regras, inimigo de protocolos e admirador das elegâncias do corpo.

Ficou, no entanto, aquela ideia inabalável de fazer o mundo um pouquinho melhor, de reduzir as desigualdades, de aliviar as algias da experiência terrena e, assim, hoje, rezei para Nossa Senhora das Dores.

É o primeiro evento público de que participo desde o início da epidemia. Vi o cortejo desfalcado. Muitos da paróquia de Santa Isabel foram abatidos pela peste. Havia choro de filhos e netos. E eu me comovi…

Uma noite de Abril e vejo que nossa procissão vai minguando, ano após ano, mesmo com os exemplos de generosidade do Papa Francisco. Somos minoria. Crescem outras denominações. Nelas, prevalece a busca da prosperidade. Não é o nosso propósito. Por isso, diminuímos.

Estou feliz, mesmo depois de uma caminhada de luto. Meus propósitos se mantêm intocados, inalterados e fortalecidos. Mas, ao mesmo tempo, me bate uma melancolia. A procissão, rala, me parece inevitavelmente rumar para a extinção. Parece-me ser uma das últimas, no crepúsculo da tradição. E eu rezo, mais uma vez, para estar equivocado. E eu rezo, mais uma vez, para resistir na esperança.

Walter Falceta é jornalista e um dos fundadores do Coletivo Democracia Corintiana (CDC)

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