Construir Resistência
Foto: Arquivo Pessoal

Outra vida

Por Miriam Waidenfeld Chaves

 

Maria está tentando. Abre os olhos, busca através da janela adivinhar o tempo. Parece nublado, mas com uma nesga de sol. Tudo indica que irá caminhar e que depois passará no supermercado.

A geladeira está vazia. Não gosta de geladeira vazia, nem entupida. Tem que ter a quantidade certa, principalmente de frutas e queijo.

Levanta depois de uns exercícios na própria cama. Sabe que precisa urgentemente comprar um colchão novo. Deste mês não passa. O problema é o que fazer com o velho? E que tipo de colchão comprar? Vai pedir ajuda a uma amiga que disse ser expert em colchões!

Antes era fácil comprar esse tipo de coisa. Agora, até lâmpada é complicado. Da última vez que tentou, saiu da loja sem nenhuma. O vendedor lhe perguntou se queria uma fluorescente, de led, de filamento ou de halogênio. Branca ou amarela. Respondeu que não sabia.

Rói as unhas ao pensar na vida. O tempo está passando e ainda continua de pijama. Daqui a pouco desiste de caminhar e de ir ao supermercado. E a geladeira continuará vazia. Assim, vai ficar difícil inventar qualquer coisa para cozinhar. Mas também não pode morrer de fome!

E se telefonar para algum restaurante? Nem pensar! Não gosta desses aplicativos que viraram mania nacional. Não quer se sentir cúmplice dessa uberização do trabalho. Também gosta de comer sua própria comida.

O mundo mudou, assim como Maria. Ela só não sabe o quanto tudo mudou. Só sabe que ela envelheceu na cara, no corpo, na alma. E quando se olha no espelho, também não encontra mais aquela criança que habitava dentro de si até bem pouco tempo atrás e que gostava de brincar, contar histórias, filmes, brigar, reivindicar, contestar.

Viver a vida dos personagens é um alento, pensa. E neste exato momento, Maria tem uma tremenda ideia. Acaba de inventar uma brincadeira para si: por uma semana irá viver a vida de uma personagem que tenha marcado a sua vida. Terá que definir algumas regras para essa seleção. Será uma caracterização apenas psíquica ou envolverá a feitura de algum figurino? E se for ao supermercado, irá como Maria ou como a personagem?

Acha meio complicada essa brincadeira. Vai ter que pensar mais tarde sobre a sua viabilidade. Enquanto isso, se dá conta de  que o dia já está terminando. A caminhada, o supermercado e o jogo na loteria vão ficar para amanhã.

Maria tinha certeza que iria ganhar na loto nesse dia. Mas ainda não tinha decidido o que faria com o dinheiro. Se fosse muito dinheiro, compraria uma casa em Londres ou em Positano? Daria o dinheiro para os pobres? Não sabe. Se algum dia ela jogar e ganhar, aí sim, decide.

O dia está terminando e Maria não saiu de casa. Continua com fome. Fica preocupada, pois acredita que está se matando aos poucos, sem perceber.

Decide brincar da brincadeira inventada alguns minutos atrás. Decide que amanhã não acordará como Maria, mas como Alice, a do País das Maravilhas.

Viverá por uns dias a vida de Alice. Crescerá, diminuirá, tomará chá com uma lebre, fará uma corrida maluca e desafiará a rainha.

Depois, talvez viva a vida de Orlando. Se apaixone por uma russa e viaje para a Turquia. Atravesse séculos e ria de si e de todos aqui na Terra.

***

Hoje pela manhã, Maria acordou como Maria. Sem personagens. Ela própria.  Mas, só sabe que nesse tempo em que esteve na muda, como um passarinho, trocou de pele.

Pulou da cama como um foguete e foi logo para a rua. Finalmente, foi ao supermercado, para depois correr atrás do sol, do vento e do mar.

Livre!

 

Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ.

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