Construir Resistência recomenda uma leitura atenta da matéria publicada no #DiárioDoCentrodoMundo
Publicamos abaixo o capítulo liberado pela editora #CompanhiadasLetras, da biografia escrita por #FernandoMoraes:
No trajeto entre São Bernardo e a Polícia Federal, Lula viu de perto, como talvez jamais tivesse visto antes, a dimensão do ódio que tinha sido instilado em parte da sociedade contra ele e seu partido. Alertados pelo noticiário transmitido ao vivo por redes de tv, de rádio e pela internet, grupos anti-Lula se postaram no caminho por onde passaria a ruidosa caravana para insultar e tentar agredir o ex-presidente. De cima dos viadutos da rodovia Anchieta, por onde o comboio seguia, lançavam rojões sobre os veículos e atiravam paus, pedras, garrafas vazias e o que tivessem nas mãos. Igualmente atingidos pelos manifestantes, logo atrás, grudados nas duas viaturas policiais, iam o Omega e o Focus da equipe de Lula. No primeiro deles, além de Moraes e um dos sargentos da segurança, iam Cristiano Zanin e Sigmaringa Seixas. Na condição de advogado da equipe de defesa de Lula, Sig conseguira que a Federal autorizasse seu embarque com Lula e Zanin no voo para Curitiba.
Quando o cortejo entrou na sinuosa Hugo D’Antola, onde fica a sede paulista da Polícia Federal, a rua estava inteiramente tomada por manifestantes anti-Lula. Ao contrário do que costuma fazer nesses casos, a Federal não isolou o quarteirão para impedir o acesso dos ativistas. Muitos deles usando a camisa verde e amarela da Seleção Brasileira de Futebol, homens e mulheres com o rosto crispado investiam contra os veículos, disparando rojões à queima-roupa, quebrando antenas, limpadores de para-brisa e espelhos retrovisores, enquanto outros davam pontapés, pedradas e pauladas na lataria e nos vidros. Avançar com os carros em alta velocidade, para se livrar dos agressores e entrar logo no estacionamento da pf, significava passar por cima de dezenas de pessoas. A fúria dos populares deixou os que iam na caravana com os nervos à flor da pele. Era compreensível: à exceção de Lula, Zanin e Sigmaringa, todos os demais passageiros de todos os veículos estavam armados. Se um deles, qualquer um deles, decidisse reagir, ainda que defensivamente, estaria aceso o estopim para uma tragédia. Só a sorte explica que dali a minutos estavam todos a salvo e ilesos, no subsolo do prédio da Federal.
Numa sala reservada, um médico pediu ao ex-presidente que se despisse para que fosse realizado o exame de corpo de delito exigido por lei. Vinte minutos depois de chegar à pf, Lula já estava no helicóptero Bell 412 da corporação que o levaria a Congonhas, cujo espaço aéreo, tal como fora acertado, tinha sido fechado para pousos, decolagens e sobrevoos de helicópteros civis. Junto com ele embarcaram Zanin, Sigmaringa, delegados e agentes da Federal.
No aeroporto paulistano, um incidente quase encrespou a operação. Ao contrário dos colegas, sempre respeitosos com o ex-presidente e seus advogados, o mal-encarado delegado Jackson Rimac Rosales Allanic, de traços faciais indígenas, chefe do caop (Comando de Aviação Operacional da pf), se dirigiu de maneira áspera a Zanin:
— Vamos ter que algemar o presidente.
Pela primeira vez viu-se o afável Cristiano Zanin elevar o tom de voz e responder com dureza:
— Nada disso! Não, senhor! Algemado ele não embarca. O senhor está violando o mandado de prisão, que veda expressamente a utilização de algemas em qualquer hipótese. Algemado o presidente não embarca.
O policial perdeu a parada, mas não a pose:
— Então levarei as algemas comigo durante o voo. Se for necessário elas serão utilizadas.
Zanin foi seco:
— Isso não será necessário, não acontecerá.
Às 20h45 o ex-presidente estava pronto para decolar rumo a Curitiba. Lula viajou na única aeronave descaracterizada disponível naquela noite, um monomotor turbo-hélice Cessna Grand Caravan cinza-claro, de matrícula pr-aac, aparelho de aparência frágil mas considerado pelos pilotos como o “jipe do ar”, pela robustez e segurança. Com vinte anos de uso pela Federal, o avião registrava apenas um incidente em seu histórico. Com um pneu murcho, em 2016 a aeronave fizera um pouso forçado em Campo Grande (ms), quando transportava US$ 2,4 milhões em dinheiro vivo, apreendidos com um casal dentro de um ônibus. Entre outros passageiros conhecidos, o pr-aac já levara a bordo os políticos Delúbio Soares e João Cláudio Genu, também acusados pela Justiça, e o traficante de drogas Fernandinho Beira-Mar. E cinco meses depois da prisão de Lula, o mesmo Grand Caravan da Federal seria utilizado para transportar de Juiz de Fora, em Minas Gerais, para uma prisão de segurança máxima em Mato Grosso do Sul o pedreiro Adélio Bispo de Oliveira, acusado de esfaquear o candidato e futuro presidente da República Jair Bolsonaro.
O pequeno grupo se dividiu no interior do avião, que tem capacidade para dois tripulantes e nove passageiros, estes distribuídos em duas fileiras de poltronas grudadas às janelas, cinco no lado direito e quatro no esquerdo, deixando um vão para a porta de acesso ao aparelho. O delegado Allanic ocupou a primeira poltrona do lado direito, Lula sentou-se na segunda e logo atrás dele instalou-se Sigmaringa Seixas. Cristiano Zanin viajou na terceira poltrona da fila esquerda, separado de Sig pelo estreito corredor entre os assentos. No assento extra do vão da porta viajou o tempo todo um agente da Polícia Federal, de coturnos, farda de camuflagem e com o rosto coberto por um gorro ninja preto, levando nas mãos um fuzil hk417.
Quando o aparelho taxiava para pegar a cabeceira da pista, alguém sintonizado na mesma faixa de ondas ouviu — e logo vazou para as redes sociais — um trecho do diálogo entre os pilotos e a torre de Congonhas. “Leva e não traz nunca mais!”, exclamou a voz não identificada. Forçada pela imprensa, a Força Aérea Brasileira confirmou a autenticidade do vazamento, mas assegurou que a provocação não fora pronunciada por um controlador de voo. Com relação aos pilotos, a Aeronáutica manteve silêncio. Estes, no entanto, parecem inocentados pela lógica, já que ninguém diria a si mesmo “leva e não traz nunca mais”.
Limitado à velocidade máxima de 350 quilômetros por hora, o Grand Caravan levou uma hora e quinze entre São Paulo e Curitiba. Uma hora e meia de absoluto silêncio no interior do aparelho. O preso, seus acompanhantes e os policiais não deram um pio. A chegada ao aeroporto Afonso Pena transcorreu sem sobressaltos. Como em Congonhas, também ali o espaço aéreo havia sido fechado para helicópteros civis. Sempre acompanhado dos advogados e cercado por um nervoso vaivém de delegados e agentes federais, Lula entrou no helicóptero que o conduziria à sede da Superintendência da Polícia Federal onde, por decisão de Moro, começaria a cumprir a pena.
Quando o aparelho, voando baixinho, se preparava para pousar no heliporto do teto da pf, Lula pôde observar, na rua, a cavalaria e o Batalhão de Choque da Polícia Militar do Paraná reprimindo com violência os manifestantes que haviam se deslocado até o local para saudá-lo. Os lulistas tinham ficado encurralados de um lado pela pm e do outro por enfurecidos moradores de Santa Cândida, o bairro de classe média alta onde se situa a Superintendência da Federal. Da janela do helicóptero em voo rasante Lula pôde ver a pancadaria e muita gente ensanguentada. Foi sua última visão antes de ser encarcerado. Em resposta à violência de que foram vítimas, ativistas de vários movimentos sociais e sindicais decidiram instalar ali, na porta da Federal, a Vigília Lula Livre, onde acamparam e de onde prometeram só sair quando o ex-presidente fosse libertado.
Na hora em que o Grand Caravan decolava em Congonhas, num jatinho fretado pelo pt embarcaram a presidente Gleisi Hoffmann, Lindbergh Farias, Emidio de Souza, o assessor de imprensa de Lula, José Crispiniano, o fotógrafo Ricardo Stuckert, o jornalista Ricardo Amaral e Otávio Antunes, do Instituto Lula. No entanto, embora tenham chegado a Curitiba meia hora antes do avião oficial, os passageiros do jatinho não puderam se despedir do ex-presidente, tão rápidos foram os procedimentos de formalização da prisão.
[…]
Pela lei brasileira, algumas autoridades — entre elas os ex-presidentes da República — têm direito a cumprir pena no que chamam “salas de estado-maior”. A que coube a Lula não tinha mais que 25 metros quadrados, com duas janelas gradeadas e de vidro opaco no alto da parede, uma cama de solteiro larga, um pequeno boxe com cortina plástica, chuveiro elétrico, pia e privada, uma mesa, quatro cadeiras de plástico e um criado-mudo. Dormitório para agentes federais de passagem por Curitiba, o cômodo nunca fora usado antes como cela. Quando os policiais pediram a Lula que tirasse o cinto, os cadarços dos tênis e os cordões dos shorts, ele sorriu:
— Fiquem tranquilos, eu não vou me suicidar. Ainda tenho muita coisa a fazer pelo Brasil.
Zanin e Sig abraçaram-no, emocionados, e partiram. Exausto com o estresse dos últimos dias, o ex-presidente recusou os sanduíches que lhe ofereceu um carcereiro (o mesmo funcionário que o despertaria na manhã seguinte com café e pão com manteiga), tirou apenas o paletó e os sapatos, e nem chegou a desfazer a mala. Como costuma fazer sempre que dorme em algum ambiente desconhecido, Lula não apagou as luzes, mas ao deitar cobriu os olhos com uma dessas vendas utilizadas em voos noturnos. Assim, diz ele, se durante a noite quiser ir ao banheiro ou tomar água, evita o risco de sair no escuro, à cata de interruptores, e tropeçar em móveis e objetos.
Não rezou, não praguejou, não xingou ninguém. Desabou na cama e dormiu tranquilo, sem precisar recorrer a soníferos.
Adormeceu com a certeza de que, fosse por razões políticas ou jurídicas, em uma semana, dez dias, no máximo, estaria em liberdade.
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