Como inventar, alimentar e empoderar um Bolsonaro

Por Walter Falceta 

Era o dia 14 de Dezembro de 1982. Uma mãe desesperada procurava atendimento médico para sua filha de nove meses de idade, que sofria com um tumor em um dos olhos.

Vivíamos mais um período de roubalheira militar, de forma que o sistema de saúde pública encontrava-se sucateado. Não havia hospital que encarasse o desafio do tratamento.

A mulher resolveu, então, recorrer ao “jornalismo” do programa televisivo “O Povo na TV”, da TVS, atual SBT, emissora do multimilionário Silvio Santos.

A equipe de produção, porém, não se empenhou em obter ajuda para os familiares. Ao contrário, moveu mundo e fundos para levar a menina para a frente das câmeras. Sob escrutínio da audiência carniceira, a pequena Danúbia morreu ao vivo, durante a transmissão. Assim funciona a indústria do terror alienante.

“O Povo na TV” esteve no ar entre 1981 e 1984. Não era pioneiro na esfera das atrações “mundo cão”. Em 1966, Jacinto Figueira Junior já iniciara empreitada semelhante em “O Homem do Sapato Branco”, programa que levava famílias para se xingarem e se esmurrarem diante do Brasil.

Nos anos 1990, o SBT teve o assustador “Aqui Agora”, com cenas de assaltos, sequestros, batidas policiais e tiroteios. Os apresentadores tinham essa obsessão mórbida por torpes agressões e assassinatos cruéis.

Naquela década, uma figura trevosa despontou na Rede OM (posteriormente CNT), de onde saltou à Record e, depois, ao SBT: Carlos Roberto Massa, o Ratinho.

Ainda nessa época, José Luiz Datena migrou da área de esportes para o território do sensacionalismo policialesco, no nauseante “Cidade Alerta”. A Record e a Bandeirantes ofereceram pavimento de mídia à experiência datenista.

Há cinco pilares ideológicos que sustentam esse tipo de atração televisiva:

– A ideia fascista de que existe um inimigo da família e que ele precisa urgentemente ser derrotado pelo uso da força, mesmo que ao arrepio da lei;

– A insistência em desenhar esse suposto vilão como um proletário marginalizado, frequentemente negro, que recusa o trabalho e empenha-se em prosperar no crime;

– A convicção de que os delinquentes somente continuam na ativa porque são protegidos pelas entidades de direitos humanos e por políticos de esquerda;

– A premissa de que os códigos de leis favorecem os bandidos e prejudicam as pessoas de bem e as pessoas de bens;

– A certeza propagandeada, todos os dias, de que há soluções simples para problemas complexos, conforme determina a cartilha do ur-fascismo.

Datena e seus iguais trabalham com o pressuposto de que toda a ordem social está por um fio, de modo que pareça premente a intervenção de um salvador da pátria, de preferência um xerifão macho, amante de armas e que, por pragmatismo, aplique a punição antes que o judiciário organize o julgamento.

Em suma, o datenismo conduz amplos setores da população a acreditarem que precisam de um Coronel Telhada, de um Conte Lopes ou de um Jair Bolsonaro.

Em seu modelo operativo, Datena não pode aguardar por apurações. Seu papel é emitir sentenças imediatas no ar, como fez com Daniele Toledo, que ele apelidou de “Monstro da Mamadeira”.

A onda de indignação levou a moça à cadeia, acusada de matar a própria filha com a mistura de cocaína ao alimento lácteo. Daniele permaneceu encarcerada por 37 dias e foi espancada por outras detentas. Depois, comprovou-se que as acusações eram absolutamente falsas.

No ano passado, durante a crise do sistema de saúde pública de Manaus, Datena ofereceu palco iluminado a Jair Bolsonaro, que pronunciou a falácia de que o STF o impedia de combater a pandemia de Covid-19. A falsidade ganhou repercussão e logo se disseminou pelas redes sociais.

Nem sempre o formato “espreme que sai sangue” é utilizado na guerra híbrida da direita. Travestido de programa de humor, o CQC, exibido pela Bandeirantes de 2008 a 2015, exerceu a mesma função.

Marcelo Tas e Danilo Gentili, entre outros, dedicaram-se de corpo e alma a sofisticar o cavalo de troia que o reacionarismo exportou para dentro dos lares brasileiros.

Não por acaso, o programa serviu de trampolim para o mesmo Jair Messias Bolsonaro, apresentando como excêntrico, mas compreendido pelas plateias como necessário.

Os inventores de Bolsonaro seguem ativos e tóxicos, nessas e em inúmeras outras atrações midiáticas. Se o miliciano desaparecer do cenário político, logo elegerão um sucessor. Cabe recordar um raciocínio fundamental de Herbert Marcuse:

– O pensamento unidimensional é sistematicamente promovido pelos criadores da política e seus fornecedores de informação de massa. Seu universo de discurso é povoado por hipóteses autovalidantes que, repetidas incessante e monopolisticamente, tornam-se definições ou ditados hipnóticos.

Convém meditar sobre o tema nestes meses que nos separam de Outubro.

 

Walter Falceta é jornalista e um dos fundadores do Coletivo Democracia Corintiana (CDC)

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