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Como ajudei padre Júlio a evitar um massacre na Febem

Por Luíz Galvão

Rebelião na Febem Tatuapé, 1992. Eram três horas da tarde daquele dia.  O prédio da administração na Avenida Celso Garcia queimando. Os menores internos incendiados pela raiva dos maus tratos e abandono  quebravam tudo. A Tropa de Choque da PM cercava o local. Assistia a tudo isso pela TV  ao vivo, em minha casa, também no mesmo bairro. Tinha trabalhado de manhã naquele dia, era repórter do Jornal da Record.

Fiquei vendo a TV e chupando o dedo. Queria estar lá, fazendo a matéria. Uma das coisas que mais me agradava  era acompanhar o MP de SP nas denúncias contra a direção da Febem.   Como cidadão e jornalista desenvolvi grande motivação e interesse  na condução e aprovação, dois anos antes,  da Lei 8.069,  que criou  o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).  Sempre pedia  ajuda ao Padre Júlio Lancellotti quando se tratava de cobrir ou produzir matérias sobre menores e Febem. Quando  dirigi o programa “Boletim de Ocorrência”, com João Leite Neto, na Record (ia ao ar às 13 horas, logo depois do inesquecível “Jornal da Tosse”,  sorry, piadinha da época, porque na bancada só tinha senhores falando, falando e,… falando …),  coloquei no estúdio os líderes do Movimento de Meninos e Meninas de Rua para debaterem suas ideias e reivindicações.  Esse grupo tinha o apoio do Padre Júlio que também estava na emissora.

Já gostava dele há pelo menos 15 anos.  Minha mãe era sua amiga e trabalhava como voluntária na Casa do Menor, no Belenzinho em SP, depois  que se aposentou.

Mas voltando a rebelião,  não me  contive e fui pessoalmente  ver ou ao menos ajudar na cobertura. Sai de casa apenas com o paletó e sem gravata no meu fusquinha 75 amarelo ovo. Em vinte minutos estacionei  numa rua a duzentos metros do “reboliço”.  A avenida estava interditada e lotada de bombeiros, policiais (que não invadiram), repórteres, ( não vi o da Record) funcionários apavorados e curiosos. Eu também estava curioso em saber o que realmente estava acontecendo dentro da Febem. Até esse momento ainda não tinha visto o Padre Julio Lancellotti.

No entanto, minha curiosidade mudou de repente. De foco. Olhei ao lado e vi a famosa favela  da  Febem (hoje ela quase desapareceu).  Pensei, “porque não ir lá tomar uma cervejinha e conhecer uns moradores”. Como repórter de polícia tinha uma espécie de atração por favelas.

Resolvi conhecer.  Andei  pelos becos e barracos como se estivesse em casa. Uma placa de cerveja me chamou a atenção e decidi tomar uma. Depois duas, três, quatro… e já estava amigo da dona do barraco e um montão de gente.  Fiquei tão empolgado com aquelas novas amizades que esqueci da rebelião por um tempo. Acho que até as três da madrugada. Foi aí que me dei conta de que estava na “Febem” errada.

Com licença, por favor.

Sai da favela  meio alterado e vi a portaria principal da Febem a uns 50 metros de distância. A cavalaria da PM circundava por segurança o complexo que tinha cerca de 250 mil metros quadrados e 18 unidades para os mais de mil  internos.

Fazia frio naquela madrugada e os repórteres de plantão estavam dentro dos carros da imprensa. Barulho mesmo só dos estalos das  brasas do prédio velho da administração. Não sei contar como  nem o que pensei ao decidir caminhar em direção à portaria .( acho que tinha alguma coisa na cerveja rs).

Lembro apenas de ter ajeitado o paletó com força, erguido a cabeça e o nariz e já na portaria dizer com voz firme” Boa noite. Com licença por favor”. O segurança simplesmente ficou estático, abriu, liberou a catraca sem perguntar nada.  Na sequência, vi um enorme portão de ferro fechado com corrente e três agentes do lado de dentro. Repeti novamente “Boa noite. Com licença por favor”. Eles olharam para a portaria e ninguém falou nada. Abriram e eu entrei num lugar que nunca tinha estado antes. Caminhei por umas pequenas “ruelas” e fui surpreendido por vários menores me agarrando por trás e com tesouras.

”Quem é você” perguntaram, “é da policia”. Fiquei apavorado. Tinham ódio nos olhos. Gritei, “sou jornalista e entrei para a avisar que a Rota pode invadir aqui a qualquer momento, como fizeram na invasão do Carandiru”.

Deu certo, ufa. Pegaram meu maço de cigarros, o isqueiro e saíram correndo. Voltei a caminhar para dentro do complexo, escuridão total, fumaça de fogo em algumas unidades,  moleques de todos os tamanhos gritando, correndo com pedaços de madeira nas mãos.  Tinham subido e destruído telhados, refeitórios e banheiros. Muita adrenalina, senti medo. Cai na real que estava numa enrascada.  Me  perguntei:  Por que cargas dágua entrei aqui? Não tenho nenhum gravador nem câmera. Foi quando vi uma luz meio improvisada no meio de uma quadra de futebol. Tinha menores sentados no chão e um homem falava com eles. Cheguei mais perto. Fiquei aliviado. Identifiquei aquele homem. Era o Padre Júlio Lancellotti.

O susto do Padre Júlio

Pensei ter encontrado um bom motivo para estar lá. Ajudar Padre Júlio. Percebi que ele estava tentando reunir os menores na quadra e assim evitar o pior. Corri para junto dele de braços erguidos e gritando, “  Padre,,,Padre, sou eu..o Galvão, Vim ajudar o sr”.  Acho que ele pensou que eu era mais um daqueles internos correndo enlouquecidos. (bem, de certa forma acho que  sim) Só quando fiquei sob a luz ele me reconheceu.  Ficou espantado. Arregalou os olhos. Fez uma cara nada agradável. Perguntou o que eu estava fazendo ali e como consegui entrar. Pelas feições dele senti que não era muito bem vindo. Me avisou que eu corria perigo de vida. Talvez deve ter pensado :” xiii mais um problema”.

Pode  ter sido por causa minha cara, meu jeito e o cheiro de álcool. Com certeza ele também se preocupou com minha segurança   Mesmo assim me propus a ajudar.  E comecei a caminhar pelas ruelas do  complexo adentro no intuito de “recolher”, pedir aos  menores que fossem para  a quadra, ficar com Padre Júlio.  Agora eu tinha uma grande missão.

Consegui convencer alguns que encontrei pelo caminho. Tinha experiência em gírias da época. Não foi  difícil “levar um lero com a rapaziada” .Com os mais violentos deixei quieto.  Sentei numa roda com uns internos e depois de um “papo  reto” eles toparam ir para a quadra, mas não sem antes eu experimentar, inalar a cola de sapateiro que eles usavam. Como nunca tinha tido tal experiência topei. Foi estranha a sensação, nem gostei. Mas arrebanhei uns dez para a quadra. Os danados me caguetaram  para o Padre Júlio. Desconversei envergonhado.  Tudo que via pelo complexo,  aqueles menores arrepiando, roubando carro do estacionamento e dando giros lá dentro ( vi uma Brasília com mais de quinze moleques  barbarizando) me lembrava um pouco o filme  Gremlins.  E não havia nada de engraçado.

Destruição e abandono

O dia amanheceu cheio de repórteres na  portaria. Eu tinha informações preciosas e não podia  ir lá. Tinha que passar para os coleguinhas que tudo que o Governo do Estado prometeu no dia anterior não foi cumprido. Não enviaram alimentos, refeições, roupas, entre vários itens  reivindicados e principalmente a transferência de menores   por causa da  super lotação. Tinha que passar para a imprensa tudo que vi, os feridos,  destruição e abandono.  Fui até as grades do Complexo, longe da portaria. Chamei uma senhora que estava no ponto de ônibus e pedi para trazer um repórter amigo meu sem dar bandeira. Poucos minutos depois esse repórter, sem me identificar,  partilhou todas as informações que eu dei. Até o meio dia o Governo enviou tudo que prometera. Fiz a matéria da transferência para o Jornal.

Fui perdoado.

Luiz Galvão Soares é jornalista profissional, formado pela Faculdade Cásper Líbero, com graduação em Convergência de Mídias. Foi repórter, editor, chefe de reportagem nas principais emissoras de TV.

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