Por Sonia Castro Lopes
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é uma política nacional que se constitui enquanto documento normativo que seleciona e organiza os conhecimentos a serem ensinados ao longo dos níveis e modalidades da educação básica no Brasil. Homologada em 20 de dezembro de 2017 pelo Conselho Nacional de Educação, baseia-se em um projeto educativo centrado em competências, um modelo de ensino articulado a um sistema de avaliação que privilegia a eficiência. As proposições da BNCC pretendem formar para o mercado de trabalho de acordo com as demandas do neoliberalismo, distanciando-se, portanto, de um projeto que vise a uma formação crítica e emancipatória.
Historicamente, a escola enfrenta uma contradição. Se por um lado serve aos interesses de formar indivíduos com determinadas competências para disputar uma vaga no mercado de trabalho; por outro, ela pode proporcionar as condições necessárias à compreensão crítica dessa realidade, bem como sua transformação. É aí que entra a importância do currículo, ou seja, o conjunto de escolhas que se referem ao “quanto”, “quando”, “o que” e “como” ensinar. Territórios contestados, como qualificam os especialistas Tadeu Tomaz da Silva e Antonio Flávio Moreira*, os currículos se constituem como nexos centrais entre conhecimento e poder. São campos em disputa que se materializam nas formas de seleção, organização e seriação dos conteúdos de ensino, bem como das práticas pedagógicas requeridas para a implantação de tais conteúdos.
No contexto brasileiro da redemocratização, sobretudo a partir de 1985, houve a retomada das proposições de autores críticos das concepções tecnicistas da educação como Paulo Freire. Tais críticas se dirigiam ao foco na eficiência, na objetividade, na neutralidade e na técnica ao propor a seleção e a organização do conhecimento a ser ensinado. Nessa perspectiva, podemos supor que o currículo pode ser um espaço de resistência perante às demandas hegemônicas da escola capitalista, que se caracterizaria por uma formação cuja meta prioritária seria a empregabilidade.
A proposta da BNCC visa à aquisição de competências e habilidades e impõe uma relação direta entre o currículo a ser cumprido pelas escolas e uma política de avaliação por resultados, alinhando-se, portanto, às políticas educacionais neoliberais em que a educação se reduz à aprendizagem de conteúdos escolares mínimos. Tais políticas vão de encontro a uma formação integral e crítica tão necessária ao desenvolvimento dos estudantes enquanto seres humanos e cidadãos que se apropriam dos conhecimentos historicamente acumulados, refletem e se sentem capazes de intervir na sociedade a fim de torná-la mais justa e democrática.
Vigente desde 2018, esse projeto vem se consolidando cada vez mais, visto que, de acordo com a política educacional proposta pelo atual governo, as escolas de educação básica deveriam privilegiar as aulas das disciplinas que compõem o leque das ciências exatas em detrimento das ciências humanas. Quando se torna impossível suprimir determinadas disciplinas do currículo por pressão da própria comunidade escolar e dos especialistas, os responsáveis pelas políticas curriculares adotam como estratégia reduzir a oferta ou a carga horária das mesmas.
Em diversos estados e municípios brasileiros, as Secretarias de Educação reduziram a carga horária de disciplinas como história, geografia, sociologia, além de tentarem extinguir a disciplina filosofia do currículo escolar. Durante a ditadura civil-militar, mais precisamente após a reforma do ensino de primeiro e segundo graus realizada pela Lei 5692/71, a disciplina filosofia foi retirada do currículo, sendo substituída por outras de teor ideológico como Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política Brasileira (OSPB). Filosofia passou a constar dos programas escolares a partir da redemocratização em 1985 e, em 2008, tornou-se matéria obrigatória do ensino médio, cujos conteúdos passaram a integrar as provas do ENEM.
Com a reforma do ensino médio realizada no governo Temer (2016) quiseram excluir filosofia e sociologia da grade curricular, mas na impossibilidade de fazê-lo devido à reação da academia e dos professores, foram rebaixadas a “estudos e práticas” constituindo assim um rol de matérias que não são consideradas prioritárias. Na realidade, essa reforma criou dois níveis de disciplinas: as prioritárias que se restringem à matemática e língua portuguesa e as de segundo nível que são as demais diluídas em áreas do conhecimento ou transformadas em temas transversais.
Os técnicos e especialistas responsáveis pela reforma alegam que a disciplina pode ser oferecida, pois as BNCC determinam apenas os componentes curriculares obrigatórios que constituem cerca de 60% dos conteúdos a serem ministrados. Ou seja, a partir do cumprimento das matérias obrigatórias referendadas pela Base, os sistemas estaduais/municipais de educação podem ampliá-lo ofertando as demais disciplinas. O problema é que para caber na grade curricular a carga horária acaba sendo reduzida muitas vezes a uma aula por semana, até porque essa matriz tem que comportar a ampliação de carga das matérias obrigatórias, além de abrigar disciplinas totalmente dispensáveis como é o caso do ensino religioso, ainda que este seja ofertado de forma facultativa.
Nessa concepção pedagógica está embutida a ideologia de uma educação empobrecida que não considera a perspectiva crítica e reflexiva que disciplinas como história, filosofia ou sociologia podem suscitar nos estudantes. Uma educação de conteúdos mínimos que só se preocupa em abastecer o mercado com profissionais pouco qualificados capazes de aceitar passivamente a intensificação e precarização de seu próprio trabalho formando um exército de reserva que alimenta o desemprego estrutural característico da economia capitalista.
Nota da autora
* Ver a respeito SILVA, T. T. da & MOREIRA, A. F. (Orgs). Territórios contestados – o currículo e os novos mapas políticos culturais. 2. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1995.