Construir Resistência
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A inacreditável noite em que encontrei Mário de Andrade

 

 

 

 

 

Lembro-me bem, como se fosse hoje, registros límpidos na retina da memória. Era nove de outubro de 1993, e eu rodava sozinho pela cidade em meu Fusca azul, 1961, adquirido um ano antes, de um guarda lotado na delegacia da Rua Tutoia.

Eu considerava o carro um tanto estranho. Primeiramente, porque tinha rodas traseiras maiores que as dianteiras. Em segundo lugar, porque dormia no pátio que servira de palco a tantas brutalidades em tempos da Ditadura Militar. Efetivamente, o veículo adquirira alguma alma, colagem de tantas que vira perecer.

Por volta de 21 horas, eu me encontrava no Largo do Paissandu, procurando fotografar o monumento Mãe Preta, obra de Julio Guerra, o mesmo que ergueu o infame Borba Gato em Santo Amaro.

De repente, percebi esgueirar-se atrás de mim uma figura esguia, terno reto, gravatinha estreita, óculos redondos e cabeça calva e morena. Ele também apreciava a obra, tímido, furtivo. Dei-lhe boa noite, e ele respondeu com um assentimento silente, enquanto acendia um cigarro.

– Então, somos todos, ao menos um pouco – declarei, para quebrar o gelo. – Minha avô materna era, na genealogia, filha de África.

– Ah, mas somos todos. Sou mesmo mulato, minha família é miscigenada, bem demais, não me reporto diretamente à aristocracia portuguesa. Ah, mas que é sermos Luanda e não Luanda neste país? Pelo jeito, não se tem ainda resposta.

Adorei a sintaxe do estranho, que logo me pareceu familiar. Puxei da memória e não encontrei referência. Talvez um parente do longínquo lado preto do clã. Tratamos de amenidades, do lixo na praça, da garoa que seria bem-vinda, da vida entrincheirada de um sujeito que se aninhava sob cobertores ralos num canteiro hostil.

– Bem, vou-me embora, mas não para Pasárgada – brinquei. – Jornalista não para quieto. Estou bolando uma pauta cultural. Sobre a urbe. Entende?

– Com licença, mas posso auxiliar? Dá-me acesso ao teu carro? Garanto que não sou gatuno. Leva-me e posso te dar retorno de algum saber geográfico.

Saímos num estrépito, pois o Fusca disparava, aqui e ali, pelo escapamento. Depois, se regulava. Indaguei-lhe o nome. E ele não se intimidou.

– Mário, Mário de Andrade!

Não sou corajoso demais para esses eventos, admito. E logo o coração me saltou à língua. Não era terreiro, mesa branca ou passeio pelo campo santo. Simplesmente, era uma aparição prosaica e citadina, de alguém que carregava perfume de lavanda, tabaco e café.

– Mário de Andrade, o escritor e polímata, presumo – disse eu, com o prazer de sempre, aquele de emular Henry Morton Stanley, no encontro com o Doutor Livingstone.

– A seu dispor. Por favor, não se acometa de uma apoplexia. Adianto que sou completamente inofensivo e atóxico.

– Um ser plasmático? – indaguei.

– Muito mais complexo que isso. Não vale a pena desperdiçar o tempo escasso em estudos de Física.

A pedido do passageiro rumamos para a Rua Aurora, que já era um desastre nesta época. Estancamos diante do 320. Mário abriu a porta e foi andar pela calçada, onde quase trombou com uma profissional do sexo magrela, que se empinava em saltos impossíveis.

– Toquei muito piano aqui. Aprendi francês. Eu me dava bem com eles, meus pais, ou não. Não sei. Carlos Augusto e Maria Luisa. Eram pessoas dadas à regra. Eu também, mas somente por fora. Pianista.

– E não brincava?

– Muito. Mas a brincadeira esportiva me trouxe um trauma enorme. Você sabe… Meu irmão morreu de um acidente no ludopédio. Futebol para mim, desde aquele momento, se foi…

– Meus sentimentos… Na verdade, desculpe a ignorância, mas nem mesmo sabia da existência desse parente.

De acordo com Mario, havia dois tipos de parentesco: um biológico; outro, de afinidade. Segundo ele, por muito tempo, ele teve quatro irmãos: Oswald, Menotti, Tarsila e Anita.

Foram eles que o ampararam quando da polêmica do Cristo brasileiro, de cabelos trançados, tão lindo busto, tão expressiva obra de arte. A família biológica não apreciou. A família das afinidades cumulou-o de elogios pela aquisição.

Rodávamos sem roteiro. Aqui e ali, ele se confundia com o traçado novo das ruas. Mostrava-se atento às placas, como se realizasse um estudo toponímico meticuloso. Observando minha curiosidade, explicou-se:

– Ora, sou o “Turista Aprendiz”. Lembra do Diário Nacional? É uma praga, peste, nunca se perde a mania. De São Paulo ao Recife, quero saber onde estão as coisas e como se chamam. O problema é essa impermanência, dos mapas e dos nomes.

Ele pediu um instante diante de um prédio esfolado. Examinou e declarou:

– Creio que ficava aqui, o cortiço que descrevi em “O Ladrão”. Quanta metamorfose! Veja lá! O povo, de uma ocorrência policial acabou numa pequena festividade comunitária. Mas tudo efêmero, porque aqui sempre se tem sono devendo e labuta no dia seguinte.

Dali, segui para a Consolação, o 94, o prédio imponente, cubista, de Jacques Pilon. Diante da Biblioteca, disparei a pergunta:

– Sabe como se chama, não?

– Alguém me estragou a surpresa, faz anos. Divertido que tanta papelada se batize com o nome de alguém tão avesso às etiquetas da elite pública. Mas o que se pode fazer?

– Um verso de repulsa! Que tal?

Eu insulto o burguês-funesto!

O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!

Fora os que algarismam os amanhãs!

Olha a vida dos nossos setembros!

Fará Sol? Choverá? Arlequinal!

Mas à chuva dos rosais

o êxtase fará sempre Sol!

– Bravo! Bravo! Ódio em ode eterna aos senhores da terra dos outros.

De repente, varando grades e paredes, nos encontramos diante da estátua do solerte companheiro, obra de Bruno Giorgi. Mário não se sentiu belo, mas digno. E descemos em direção à Praça Ramos. Segundo ele, o Teatro Municipal, ideia eclética-conservadora de Claudio Rossi, parecia congelado no tempo, ainda que o entorno tivesse sido brutalmente revirado.

Mário se mostrou ambíguo sobre a Semana de Arte Moderna, ainda mais sobre a acusação de figurar como seu principal mandante. Segundo ele, 1922 explodira bem antes daquele festival. Em sua versão, a revolução fizera-se como natural resultado do país inventado, em invenção, mesclado no arrepio do medo, no ranger dos grilhões, nas conflagrações do ouro, na inocência-ferocidade indígena, em tantos gozos consentidos e não consentidos.

Pela primeira vez, encontrei meu companheiro amuado, entristecido, circunspecto. Pelo que compreendi, a mensagem era mais e menos do que a compreendida. Tratava-se de um equívoco de escala.

Porque a semana não seria somente de rasgos violentos, mas também de algum tricot prestimoso. Havia uma raiva que necessitava dispersar sua energia. Mas era uma criação que convidava as almas para o banquete das sabedorias e das ignorâncias. O difícil em São Paulo teria sido botar à luz da civilidade os poetas, os bêbados, os doutores, os barões, as putas, as mães de família, os operários, os exploradores, os mesquinhos e os viajantes do tempo.

Como adivinhei olhos marejados, empurrei Mário para dentro do veículo. Engatei marchas rápidas e logo nos encontrávamos nas margens do Tamanduateí. E o escritor logo esboçou um sorriso sápido.

Contou o que eu já sabia. Ali, no prédio anexo ao novo Mercado Municipal, funcionara o Departamento Municipal de Cultura, sob sua gestão dedicada. Em dias de faina exaustiva, Mário pedia que Sônia lhe comprasse bananas. Elas tinham potássio, evitavam as câimbras. Noutras vezes, seguia ele mesmo pelo povaréu.

O turista aprendiz nunca sossegava, nem na boca. Pelo país, o poeta provara os versos do vatapá e do efó, da compota de bacuri e de sorvete de murici. Nos saraus da casa na Barra Funda, não faltava a aguardente de cana, os licores de frutas ignotas, o biscoitinho de polvilho, o bom-bocado e o amanteigado.

– Falceta, admito que tenho saudade de sentir fome – riu-se, enquanto revia os vitrais de Conrado Sorgenicht.

Já era tarde quando o visitante cogitou de visitar um aldeamento indígena. Lembrei de Parelheiros, mas era no limite sul da cidade. Desconhecia o caminho. Perguntei se poderíamos agendar para outra ocasião. Ele anuiu, sem ressentimento.

Fomos à Praça da Sé. Ali, entre os desfavorecidos, os andarilhos, os trabalhadores noturnos, Mário pôde encontrar essa variedade multiplicada de macunaímas. Ouvia uns lamentos, uns cânticos, a narrativa confusa e melódica de um pretindígena que subia e descia, sem parar, as escadas da catedral. Talvez fosse uma réplica de seu herói sem personagem.

– Mas nunca se reproduz na repetição, meu caro. Esse amálgama é de novidade permanente. O que noto aí é a prevalência do sofrimento, em uma terra que se ancorou nas desigualdades dolorosas, que pagou muito mal a fidelidade cunhadista e que engambelou os capitães do mato. É esse domínio colonial que nunca foi superado. Se somos sobreviventes, é porque misturamos dialetos, aquele dos bandeirantes e aquele do povo da Terra Sem Males. Se um dia tivermos a revolução, será da desobediência da língua. Ela, aos poucos, vai construir o léxico de levante natural. Lembra das experiências do 22 e do 35, em “Primeiro de Maio”?

Eu tinha lido. Ufa! Felizmente, fui aluno interessado. Mas não captei a mensagem. Em casa, certamente releria cuidadosamente o conto.

Caminhávamos pela Rua Direita quando perguntei o porquê daquela aparição inesperada. Ele respondeu como um detento. Fora libertado em condicional, por bom comportamento. Afinal, naquele dia completava seu centésimo aniversário.

Abracei-o fraternalmente e dei os parabéns. Ele quase se esquivou, ligeiramente incomodado de meu júbilo excessivo. Mario me disse sobre seus apuros com a carne e os afetos, com esse horror que tinha sido a socialização maledicente de sua vida.

De seu relato discreto e da menção à carta a Manuel Bandeira, compreendi o estrago promovido pela detração e, depois, pela conspiração do pudor.

Mário foi tão grande em suas múltiplas sensibilidades que, pelo que compreendi, amou difusamente mulheres e homens, talvez mais os segundos, mas foi, sobretudo, de platonismos, de paixões amarradas, sufocadas pela estupidez geral, até mesmo de seus amigos modernos. Compadeci-me, mas me mantive positivo, a fim de não melindrá-lo. O tema ainda o lançava numa zona de desconforto.

Já era madrugada quando me pediu para subir a Consolação. Alegava pesar a fadiga, da passagem pelo portal e de nossas andanças. Afinal, habitava de empréstimo um corpo de 51 anos de idade. Cogitou de retornar em 2022.

Apeou à porta cemitério, onde jazia inteiro no que sobrara. Não fizeram o favor de lhe botar, conforme desejo expresso, os pés na Rua Aurora, o sexo no Paissandu, a cabeça na Lopes Chaves, o coração no Pátio do Colégio, a língua no alto do Ipiranga e os olhos no Jaraguá.

Então, me tomou a mão direita com as duas mãos, mornas, sedosas, e sorriu mais com os olhos, expandindo a gratidão através dos aros redondos. Escutei seus passos na calçada, vi sua sombra diluir-se, esqueci seus perfumes. E esvaneceu-se, enfim.

 

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