Construir Resistência
Foto: Arquivo Pessoal

A arte de aprender e ensinar e aprender

Por Beatriz Herkenhoff

O cerne da educação libertadora não está no método e nas técnicas utilizadas, mas na relação que se estabelece com o conhecimento e com a realidade, em que o mundo escolar (o das letras) não se dissocia do mundo dos fatos, da vida, das lutas, da discriminação e das crises cotidianas

(FREIRE, 1974).

Carrego comigo uma linda história em relação à educação. Minha família tinha uma Escola de Comércio na cidade onde nasci. Meu avô ficava na calçada convidando os jovens para estudar. Oferecia bolsa de estudos (gratuidade) para aqueles que não podiam pagar.

Cresci nessa escola, além do tempo dedicado ao estudo, brincava com os primos de pique, de bola, subíamos em árvores, pegávamos frutas nos pés, tomávamos banho de chuva, brincávamos de casinha (os primos mais velhos faziam cozinhado para todos). Associávamos, permanentemente, o mundo das letras à intensidade da vida. Lembranças maravilhosas que fazem parte da constituição do meu ser.

Será que nesse tempo fiquei embebida da arte de aprender e ensinar? Captei por osmose o amor pela educação?

Além de ser filha de professor, minha mãe também exerceu essa função através de grupos de jovens que coordenou e de outras atividades religiosas em que partilhava seus conhecimentos e vivências através de palestras. Ao entrar na faculdade optei pelo curso de Serviço Social.

Não passou pela minha cabeça ser professora. Só despertei para essa possibilidade quando, em 1984, como assistente social da CVRD, tirei uma licença sem vencimento e trabalhei na ERGO (Belo Horizonte), ministrando cursos na área da dependência química. Essa experiência despertou o desejo de ser professora e fiz concurso para a #UniversidadeFederaldoEspíritoSanto.

Tornar-me professora, após longa experiência como assistente social, possibilitou que eu partilhasse em sala de aula caminhos e estratégias que construí no exercício profissional. A formação do assistente social é pautada por um compromisso ético que possibilita ao agir profissional contribuir com mudanças necessárias para a redução das desigualdades e das injustiças sociais, entre tantos objetivos.

Ao ministrar o conteúdo teórico, essencial para a formação do estudante, eu agregava vivências que partiam de sua realidade e possibilitavam o protagonismo de cada um. Eram frequentes as trocas, o respeito pelas diferenças, a empatia, a afirmação das identidades, o despertar da inquietude e do inconformismo. Atitudes que geravam a necessidade de mudanças, de organização e mobilização da categoria em articulação com a sociedade.

#PauloFreire era uma referência para as relações que eu estabelecia com os estudantes. Como ele, acredito que a educação bancária é “um ato de depositar, transferir, transmitir valores e conhecimentos” (FREIRE, 1974, p. 67) minimizando ou anulando a capacidade crítica dos educandos.

Enquanto a educação libertadora é “um ato crítico de conhecimento, de leitura da realidade, de compreensão de como funciona a sociedade” (FREIRE; SHOR, 1987, p. 51). Uma ação que envolve a participação e faz do diálogo um meio do educando identificar suas atitudes mágicas, ingênuas e fatalistas diante do mundo e dos fatos.

Na apresentação dos trabalhos em sala de aula, os alunos eram estimulados em sua criatividade, integrando suas vivências ao conteúdo teórico-metodológico. Utilizando a música, a arte, a dança, as imagens fotográficas, o teatro, entre tantos outros recursos que enriqueciam o aprendizado.

Era possível construir um relacionamento horizontal, em que o professor não se colocava como o detentor do conhecimento. Experiências que se reproduziam em diferentes espaços de intervenção.
Sempre acreditei que o processo cognitivo não se dissocia do sentir e do agir. Sem prazer, sem afetividade, sem ética, sem compromisso, sem criticidade e sem esperança, o aprendizado fica vazio de significados.

Vivi uma experiência de plenitude como professora. Cada estudante deixou, em mim, um pedacinho de sua história; a marca de sua singularidade e originalidade; a lembrança do seu jeito de ser; de resistir; de criar; de viver e sobreviver.

Além da sala de aula, os professores e alunos participavam (participam) de núcleos de pesquisa e de extensão que ofereciam (oferecem) ricas experiências e uma articulação com a sociedade através de serviços, pesquisas, cursos e ações conjuntas. Hoje sou aposentada e fico imaginando o impacto da pandemia na formação dos estudantes.

Com o ensino online, não interagem no espaço da universidade, têm reduzida a participação nos núcleos de pesquisa e nos projetos de extensão. Perdem a intensidade das trocas e das descobertas cotidianas que ocorrem inclusive na interação com outros cursos. Os vínculos afetivos que alimentam o compromisso profissional ficam comprometidos.

Fico imaginando o esforço dos professores para compensar tudo isso através das aulas remotas. Além de darem continuidade às atividades de pesquisa, extensão e orientação, as professoras que são mães, tiveram que acumular as funções acadêmicas com os cuidados domésticos e com os filhos que demandam atenção.

A mudança do sistema presencial para o remoto foi radical e abrupto. Os professores passaram a utilizar tecnologias que se tornaram a única forma de comunicação com os alunos.

Essa nova modalidade provocou ansiedade e frustação. É difícil envolver os alunos e captar seu interesse quando eles não abrem a câmera. Os professores tiveram que desenvolver novas estratégias para garantir uma participação mais efetiva.

De acordo com #JeaneFerraz, professora do Departamento de Serviço Social :

“Não tivemos treinamento adequado para realizar o trabalho online. Tive que adaptar meu quarto para dar aulas. Muitos alunos não têm acesso à internet e enfrentam problemas emocionais gerados pelo isolamento (que afetam sua saúde mental). A evasão aumentou e o desinteresse também. A aula online gerou a redução em 50 % dos conteúdos programáticos, impactando na formação do assistente social e no seu perfil profissional.”

Jeane continua:

“Como me vejo no meio de tudo isso? Considero-me uma pessoa melhor porque consigo me olhar e ao me olhar consigo enxergar os alunos. O grande desafio é manter a humanização no formato online. Nesse sentido, o feedback dos alunos foi estimulante, disseram que consegui ministrar uma disciplina densa, mantendo a humanidade.”

Escolhi esse foco de reflexão na dinâmica da educação, mas, outros temas são desafiadores e nos convidam à resistência e mobilização, como: o desmonte do ensino público; a redução de verba para a educação e para a pesquisa; a desvalorização do professor; a exigência de produtivismo; o controle ideológico dos conteúdos ministrados em sala de aula, entre outros. Nesse contexto, torna-se fundamental o empenho do professor de ensino médio para manter os alunos na escola até a conclusão dos estudos e estimulá-los a prosseguir no nível superior.

Com essa crônica, quero expressar meu respeito, admiração e gratidão a todos os professores/as que exercem sua vocação com compromisso, ética e amor. São verdadeiros heróis ao manterem a relação dialógica mesmo em tempos de pandemia.

Que sejam respeitados e reconhecidos!

Beatriz Herkenhoff é doutora em serviço social pela PUC São Paulo. Professora aposentada da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo).

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