“Por que a imprensa se recusa a reconhecer Dilma Rousseff”?

Por Roberto Xavier

Há uma ironia amarga na trajetória recente de Dilma Rousseff. No exato momento em que seu nome ganha força e respeito nos circuitos da geopolítica global, ela parece cada vez mais ausente da memória e da narrativa pública brasileira.

Enquanto preside o Banco dos BRICS e se torna uma das vozes mais ativas na defesa de uma transição ecológica justa, a ex-presidenta do Brasil continua sendo tratada pela grande imprensa nacional como uma figura lateral, quase um eco de um passado político incômodo.

A COP 30 em Belém, expôe essa contradição com clareza quase simbólica.

Diante de chefes de Estado, cientistas e representantes de organismos internacionais, Dilma apresentou um dos discursos mais consistentes do encontro: prometeu que o Banco dos BRICS financiará projetos de transição justa, voltados não apenas ao meio ambiente, mas à vida das pessoas, às comunidades, aos trabalhadores, às populações afetadas pelas mudanças climáticas.

Falou de energia limpa, de soberania financeira e de justiça social como partes de um mesmo desafio civilizatório.

E, mesmo assim, o que poderia ter sido manchete virou nota de rodapé.

O papel que Dilma desempenha hoje é tudo, menos marginal.

À frente de uma instituição sediada em Xangai, com capital de dezenas de bilhões de dólares, ela vem impulsionando o financiamento de projetos de infraestrutura sustentável, energia renovável e reconstrução ambiental, temas que moldarão as próximas décadas.

Sob sua direção, o o Banco já destinou parte expressiva de seus recursos a iniciativas voltadas à descarbonização e defende, de maneira inédita, que 30% dos financiamentos sejam feitos em moedas locais, reduzindo a dependência do dólar e fortalecendo a soberania financeira dos países do Sul Global.

O discurso em Belém condensou esse projeto de longo alcance: conectar economia e ecologia, desenvolvimento e justiça, pessoas e planeta.

Apesar disso, a cobertura midiática brasileira segue tratando Dilma com a frieza de um rodapé. O protagonismo internacional da ex-presidenta raramente ganha destaque, e quando aparece é de modo episódico, como curiosidade diplomática ou pretexto para reavivar antigas controvérsias domésticas.

O que está em jogo, porém, é mais do que uma injustiça pessoal: é o sintoma de uma cegueira estrutural, a incapacidade do país, e especialmente de sua imprensa, de reconhecer-se como parte de uma ordem global em transformação.

A mídia brasileira continua cativa de uma lógica provinciana. Fala com paixão das disputas do Congresso, dos humores do mercado, das crises ministeriais, mas se mostra desinteressada quando o assunto é o lugar do Brasil no mundo.

Sob essa lente, Dilma é apenas uma ex-presidenta “alocada” em um banco em Xangai, e não a dirigente de uma instituição que financia a transição energética de dezenas de países e oferece alternativas concretas ao modelo financeiro ocidental.

Há, nesse silêncio, também um viés de gênero e de classe. Dilma é uma mulher que enfrentou, e sobreviveu, à mais intensa campanha de deslegitimação política da história recente do país.

Foi derrubada sob o peso de uma narrativa corrosiva, construída por muitos dos mesmos meios que hoje a ignoram.

Reconhecer seu êxito internacional seria, para boa parte da imprensa, reconhecer o erro cometido e, mais ainda, admitir que a mulher acusada de “incompetência” tornou-se referência mundial em governança e finanças sustentáveis.

É possível, claro, que parte dessa negligência seja involuntária. Os temas tratados por Dilma: moedas locais, desenvolvimento verde, arquitetura financeira multipolar, não são de fácil tradução jornalística. Mas o jornalismo existe, precisamente, para tornar compreensível o que é complexo.

Quando não se explica, o que se perde é a possibilidade de formar opinião pública sobre questões decisivas: como o Brasil pode se integrar à nova economia verde?

Que papel pode desempenhar na governança global do clima? E que significado tem o Sul Global reivindicar seu próprio banco e sua própria voz?

Ignorar Dilma é, portanto, mais do que uma omissão: é desperdiçar uma oportunidade de pensar o país em outra escala.

Ela representa um Brasil que fala privilegiadamente com a China, virtualmente a maior economia global e líder dessa transição que financia reconstruções ambientais, que busca autonomia financeira e que tem algo a ensinar sobre desenvolvimento soberano.

Essa é uma história que merecia estar nas capas dos jornais, sobretudo durante a COP 30, quando o mundo a ouviu falar de futuro e o Brasil, mais uma vez, escolheu o silêncio.

Enquanto o planeta a escuta, o Brasil finge não ver. É uma cena familiar: o talento e o protagonismo brasileiros só são plenamente reconhecidos quando atravessam as fronteiras e mesmo assim, continuam a ser tratados aqui com indiferença.

Dilma Rousseff, da presidência de um banco global, devolve ao país um tipo de grandeza que sua imprensa parece incapaz de narrar. E talvez seja justamente esse o incômodo: perceber que, apesar de tudo, ela voltou vencedora e muito maior que em 2016.

 

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Resposta de 0

  1. Excelente texto. Aponta claramente o provincianismo de nossa imprensa em sua maioria. Isso para não dizer ignorância e subserviência ao império decadente dos EUA.
    E, também, necessário ainda dizer, uma dose gigantesca de misoginia.

  2. Texto maravilhoso. Diante de todos os argumentos brilhantemente apresentados, acredito que tb valem o despeito à grandeza de Dilma e a pequenez de não reconhecer que sim, o golpe de 2016, com todos os absurdos que o
    acompanharam foi um teatro historicamente vergonhoso. Dilma coração valente.

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