A cidade que escolhe quem pode ficar

Por Luiza Soeiro – Desacato.info.

Foto: Guilherme Bernal

Florianópolis ergue fronteiras invisíveis para decidir quem pertence e quem deve ser acolhido 

No último domingo, 2 de novembro, o prefeito de Florianópolis, Topázio Neto, publicou um vídeo nas redes sociais celebrando o novo “plano de controle migratório” instalado na rodoviária da capital catarinense.

No vídeo, agentes da assistência social aparecem interrogando um homem idoso, de chinelos, recém-chegado à cidade. Com um tom de satisfação e segurança, o prefeito afirma que quem desembarcar “sem moradia, sem emprego ou sem plano de vida” será devolvido à sua cidade de origem.

O verbo escolhido: devolver, não é inocente. Ele carrega uma lógica perversa que transforma pessoas em objetos, cidadãos em mercadorias devolvidas ao remetente. É a institucionalização da exclusão sob o disfarce da gestão pública. A naturalidade com que o prefeito pronuncia a frase revela o que está em jogo: um projeto de poder que confunde política social com controle populacional.

O discurso de Topázio se sustenta na ideia de “prevenção ao aumento de pessoas em situação de rua”. Mas a pergunta que se impõe é: e os cerca de 3 mil moradores de rua que já vivem em Florianópolis? Que tipo de política é capaz de “prevenir” a pobreza sem enfrentar suas causas? O que há aqui não é prevenção, é expulsão travestida de cuidado.

Ao invés de pensar em estratégias de ressocialização e acolhimento, que devolvam dignidade e autonomia a quem já vive à margem, o prefeito opta por deslocar o problema para fora dos limites da cidade. Um gesto que reforça a desigualdade, ao mesmo tempo em que simula uma espécie de “ordem pública”.

A escolha de instalar um “posto de triagem” na rodoviária também revela muito sobre o alvo dessa política. O controle não está voltado ao aeroporto internacional, por onde chegam os milhões de turistas esperados para o verão, muitos deles estrangeiros. Ninguém lá é interrogado sobre planos de vida. O controle ocorre na rodoviária porque é lá que desembarca o Brasil que não cabe na vitrine, o país real, pobre, aquele que ameaça o projeto de cidade branca, higienizada e vendável.

Essa política se insere num discurso global de extrema direita, que ganha força ao transformar o medo e o preconceito em pauta de governo. É a mesma lógica que ergue muros, constrói fronteiras e criminaliza a mobilidade humana. O “controle migratório” de Topázio é o espelho tropical das práticas de exclusão vistas na Europa e nos Estados Unidos, mas com um agravante: aqui, o inimigo é considerado aquele que vem de dentro.

O filósofo Michel Foucault já havia descrito esse tipo de poder: um Estado que regula a vida e a morte, decidindo quais corpos são produtivos e quais devem ser eliminados dos espaços urbanos. É o que ele chama de biopolítica

Há, também, um componente performativo e simbólico nesse discurso. Existem vidas que o Estado considera “não passíveis de luto”, vidas que podem ser descartadas sem remorso. O vídeo de Topázio é a encenação perfeita dessa lógica: o prefeito se mostra orgulhoso ao anunciar a exclusão como se fosse mérito, ao exibir um homem vulnerável como prova de eficiência administrativa. É o espetáculo da desumanização.

Essa narrativa de “devolução” não busca resolver nada, busca ocultar. É a tentativa de preservar a imagem de uma cidade “mágica”, turística, sem as marcas visíveis da desigualdade. Mas a cidade não é feita apenas de quem consome, e sim de quem trabalha, caminha, sobrevive. Florianópolis pertence também aos que chegam sem “plano de vida”, porque o simples ato de migrar já é, em si, um projeto de vida.

O que está em curso é uma política de exclusão institucionalizada, que transforma a pobreza em problema de circulação. Um modelo que não olha para as pessoas, mas para a paisagem. Ao invés de reconhecer os moradores de rua como sujeitos de direitos e investir em ressocialização, capacitação e inclusão, a prefeitura opta por removê-los da vista pública, reforçando o ciclo de vulnerabilidade que diz combater.

Florianópolis se vende como ilha de oportunidades, mas o que se revela é uma ilha cercada por muros simbólicos, onde o pertencimento é privilégio de poucos. O “controle migratório” é, portanto, mais do que uma medida administrativa, é a expressão moderna da violência estatal. Uma política que, sob o pretexto da ordem, reativa velhas formas de exclusão baseadas em racismo, xenofobia e aporofobia.

Enquanto o prefeito se orgulha de “devolver pessoas”, o que ele realmente faz é devolver a cidade ao medo e à intolerância. E isso, ao contrário do que ele acredita, não é prevenção: é retrocesso.

 

 

 

 

 

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Uma resposta

  1. Em Ubatuba, durante anos, a política social consistia em dar banho nos moradores de rua e visitantes pobres que procurassem a assistência social, embarca-los numa Kombi e deixá-los nas proximidades de Taubaté.

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