Os godos, visigodos e ostrogodos estão entre nós

Por Jaques Gruman 

Uma de minhas memórias mais antigas é a de um cara vestido com roupa estranha, chapéu grudado no coco e máscara carnavalesca.

Cavalgava um cavalo branco, que não era o do Napoleão, atirava a granel no oeste norte-americano e explorava os serviços de um indígena aculturado, sem vontade própria e resignado à submissão.

A dupla, muito popular entre a molecada, ia ao ar nos televisores movidos a lenha dos anos 50 e 60, preto e branco de baixa resolução.

Falo, claro, do seriado Zorro, o Lone Ranger. Tonto é o indígena coadjuvante, uma espécie de “índio civilizado” cantado por Dalva de Oliveira e Francisco Alves, o Chico Viola, em 1939.

O Menino não desconfiava, mas sua geração estava sendo apresentada à cultura da bala, da violência justiceira.

A chamada conquista do oeste, contemporânea do extermínio de nações indígenas, embalava os seriados televisivos e dava dimensão épica ao fascínio por revólveres, rifles, duelos, emboscadas e pancadarias.

Crescemos quase sentindo o cheiro da pólvora de mentirinha, admirando-o, desejando-o.

No dia 10 passado, um certo Charles James Kirk foi assassinado com um tiro no pescoço, quando palestrava na Utah Valley University.

Nunca tinha ouvido falar nele, mas a enorme repercussão do caso me fez procurar informações. Tive, então, contato com mais um dos adornos tóxicos da era Trump.

Kirk era um jovem divulgador das doutrinas que estão fazendo os Estados Unidos tornarem-se uma Meca da extrema-direita.

Reportagem da revista The Nation apresenta-o como convicto racista, transfóbico, homofóbico e misógino, que usava citações bíblicas para justificar estas posições.

A revista, em sua edição de 12 de setembro, cita uma quantidade impressionante de declarações sórdidas que ele fez para diversos públicos.

Orador habilidoso, abriu portas e janelas para o trumpismo. Como disse a jornalista Elizabeth Spiers, que assina a matéria da revista: Não vou comemorar a sua morte, mas não sou obrigada a celebrar sua vida.

Não é aceitável resolver divergências a bala e, por isso, o tiro que matou Kirk é condenável.

Ele, entretanto, aconteceu num país onde armas equivalem a móveis e utensílios e atentados a bala são arroz de festa.

Ficando apenas em presidentes ianques. Quatro dos quarenta e cinco foram assassinados (Lincoln, Garfield, McKinley e Kennedy).

Dois foram feridos em tentativas frustradas (Reagan, Roosevelt). É a cultura da violência armada, em sua exuberância macabra. Cultura que Kirk defendia abertamente e acabou sendo vítima dela.

O estado-maior trumpista aproveitou o caso para transformar Kirk em “mártir”. No funeral, que reuniu cerca de 100 mil pessoas, o divulgador assassinado foi comparado a Cristo por gente do governo.

Uma das pessoas presentes disse que via “Kirk como um mártir de Cristo, sem dúvida”. No antigo Twitter, um pastor presbiteriano escreveu: “Não é um caso trágico, mas parte da guerra que o mundo trava contra Cristo”.

Conhecemos bem, e dolorosamente, a artimanha de combinar religião com política (no sentido mais amplo).

Entre nós, ela frequenta templos e trios elétricos, com resultados catastróficos para a formação política do povo.

Do “martírio” à caça às bruxas é um pulo. Já está em curso um cala-boca contra redes de comunicação que não são dóceis ao trumpismo, classificadas indistintamente como “extremistas de esquerda”.

Os Estados Unidos, aliás, têm extenso know-how em caça às bruxas. De Dalton Trumbo a John Lennon, de Zero Mostel a Martin Luther King, de Chaplin a Malcolm X, os arapongas sempre trataram de arrumar jeitos e formas para perseguir os “inimigos do rei”.

A paranoia antiesquerdista tem sólidas raízes na terra dos hambúrgueres.

Como a movimentação destas ratazanas pode nos afetar? Há risco de montarmos cavalos imaginários e sairmos dando tiros por aí?

Bem, outro dia estava visitando um sebo, quando ouvi a conversa entre uma senhorinha e um senhorzinho. Indignada, a senhorinha dizia que no Brasil só tem frouxo.

Ninguém é macho suficiente para pegar uma arma e fuzilar o Alexandre de Moraes. Está todo o mundo, segundo ela, distraído com futebol. O senhorzinho balançava a cabeça, concordando com ela.

Saí de mansinho. Insanidade machuca. Jamais imaginei que ouviria aquele tipo de esbravejamento num ambiente que considero sagrado, convite permanente à curiosidade e à surpresa.

Os godos, visigodos e ostrogodos estão entre nós e não voltarão à cloaca tão cedo.

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