Por Miriam Waidenfeld Chaves
Turco, da varanda de sua mansão em Maracatu, admira seu domínio. À direita, a piscina, a churrasqueira e o gramado coalhado de palmeiras centenárias. À esquerda, seu xodó: um viveiro com 50 aves exóticas.
Ali, em silencio, mas cercado por uma sinfonia desesperada de piados, delibera sobre o futuro de seus negócios. Criteriosamente, decide a respeito da vida e da morte de seus inimigos e até mesmo de alguns aliados.
Faz questão de manter certas tradições e todo ano viaja até a distante Ásia Central para passar uns poucos dias acampado no deserto de Karakum. Naquelas noites, ao se encontrar com seus familiares, celebra suas conquistas e purifica-se nas areias negras daquele território.
No dia em que partiu, ganhou de presente de seu avô, uma Adaga de prata e um Nazar, de um azul enegrecido. Desde aí, florete e patuá estão sempre na companhia de seu dono, como se através deles retornasse a sua terra natal.
Hoje, seus domínios se estendem por toda a Zona Norte da cidade, onde ali fixou residência ainda criança. Temido, não tolera traição.
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Salvador adora o Recreio dos Abades. Seu quintal, conforme costuma dizer sobre aquele antigo pântano, cercado por uma areia branca e fina.
Ainda criança, junto com o pai, ali caçou cachorro do mato, gambá, coruja, gavião e até jacaré, cuja carne até hoje aprecia. Depois, seu avô empalhava os bichos e os colocava em uma sala especial da casa de veraneio, em Araruama. Nessa época, também se batizou na Igreja de seu padrinho que, mais tarde, o levou para se purificar nas águas do próprio rio Jordão.
Todas as manhãs, de sua varanda, admira o movimento do mar e se deixa levar pelo horizonte a sua frente. Em silêncio, ninguém ousa se aproximar. Apenas Cabrito, seu fiel escudeiro que o estima como se fosse um irmão mais velho.
Dono da Zona Oeste da cidade, há duas décadas comanda de maneira feroz seus subordinados que não têm coragem de olhá-lo de frente. Acreditam que investido pelo poder de Cristo, advinha os pensamentos daqueles que o encaram.
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Ungidos por terra e água, respectivamente, Turco e Salvador reinam sem opositores. Tornaram-se por mérito e crueldade líderes incontestes de sua facção. De suas cidadelas, não abrem mão de um castigo mais feroz, quando necessário: Turco se utiliza de sua Adaga centenária e Salvador de seu Chicote de ferro, roubado do museu sobre a escravidão da cidade.
Noutro dia, encontraram-se no casamento da filha do prefeito e trocaram algumas palavras. Soube-se que, apesar da relutância dos filhos, reafirmaram o seu pacto frente à divisão territorial da cidade. E se seus descendentes continuaram rosnando um para o outro, ambos trataram de enquadrá-los. Sabiam que em algum momento, lá no futuro, poderiam até se tornar aliados.
Nesses termos, toda vez que se encontram brindam o conclave com água 100% cristalina, pois apesar da fartura do champanhe nessas reuniões, é essa bebida sem graça a estrela de todas as celebrações atuais. Tornou-se mercadoria valiosa nesses tempos. Principalmente se considerarmos aquela com um teor de pureza acima de 96%.
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Dois anos depois, a vida se encarrega de juntar Turco e Salvador. Seus filhos, enfim, selam essa fatídica união no altar. Nesse momento, concluem que a hora é esta e, portanto, arquitetam um plano extraordinário: dominar de vez o interior do estado, um enorme pedaço de terra inóspito, pipocado por rochas e mato, mas com um lençol freático colossal.
Assim, num entardecer de outono e céu róseo, ambos adentram nessas terras despatriadas, acompanhados por alguns correligionários. Munidos com os equipamentos necessários, ali fincam uma bandeira preta e logo iniciam a construção de grandes poços de captação de água.
Os moradores, apesar de seus olhares atravessados, parecem aceitar a presença alheia desses forasteiros. Inclusive, concordam que é melhor manter tanto a Adaga quanto o Chicote de ferro engavetados, pois preferem esperar.
A artimanha é a sua arma. E, desde que os invasores ali chegaram, todo o domingo sobem à montanha do Piá para ali mirarem o horizonte, parece à espera não se sabe bem do quê.
Nessas horas, permanecem repetindo frases inaudíveis, “como que rezando?”, pergunta Cabrito para si mesmo que de tocaia acompanha de longe o movimento desse bando de gente.
Já em casa, seu relato é sempre o mesmo:
– Não dá prá saber o quê que esses caras fazem lá no alto. É um mistério. Às vezes, fico até com medo de tarem rogando alguma praga na firma.
Salvador olha para Turco que agarra o seu Nazar e solta:
– Acho que tão aprontando alguma vingança. Tô certo que sabem que picotamos Seu Joaquim Xavier.
– Também aquele desgramado não quis falar onde tava o olho d’água.
– Será? Parecem todos uns pobres coitados!
– Agora, cê falou tudo, Salvador, “parecem”.
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No domingo seguinte, o dia amanhece radiante: um sol vermelho nasce lá no alto do Piá, para logo em seguida, surgir um vento leve como que querendo fazer algum tipo de anunciação.
Trata-se de um dia de descanso merecido, pois desde que ali chegaram o trabalho em sentar praça em terra de ninguém é bastante árduo. Cada um em seu quarto ainda louva ao seu Deus, numa reza matinal. Depois, irão se refestelar na piscina, construída, em segredo, na casa que ergueram na Rua Detrás.
A população, por outro lado, continua a dormir. Com suas casas ainda trancadas, parecem convictos de que ainda é noite.
De repente, uma nuvem de areia espessa se arma, cegando aquele que ousa encará-la. Vermelha, avança sobre uma cidade silenciosa. Com uma altura gigante, arrasta junto consigo toda a fúria do universo.
Às 15:00, um olho de furacão se forma e segue na direção da Rua Detrás, parecendo procurar por endereço certo. Embrenha-se na vereda em rodopio, como que dançando e se divertindo. Uivando, invade a casa com piscina.
Turco e Salvador nadam despreocupadamente. E sem perceberem são envoltos pelo vento que numa mudança de rumo inesperada arremete.
Um vermelho sangue se mistura à água azul da piscina que borrada de justiça encharca de roxo Bíblia e Alcorão. Pesados, submergem. Pousam lá no fundo da piscina ao lado da Adaga e do Chicote.
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Os moradores acordam.
Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ.