Por Vinicius Monção
Fui filho único por 10 anos.
Minha mãe, durante este período, e até recentemente, trabalhava com coisas comuns às mulheres sem inserção ao mercado formal de trabalho: era manicure.
Lembro-me de aos sábados a varanda de nossa casa cheia de senhoras da vizinhança que tinham hora agendada para fazer as unhas, pé e mão. Néia era uma manicure de mão-cheia. Não era muito inventiva, mas fazia o feijão com arroz como ninguém. Geralmente, neste dia da semana, a primeira freguesa chegava às 7h da manhã e a última saia lá pelas 21h. No dia anterior ela deixava a comida pronta para mim. Os pratos feitos na geladeira que eu deveria esquentar em banho-maria. Um sistema precário que eu, até hoje, me surpreendo de nunca ter me queimado. O prato já feito era coberto com uma tampa de panela e, em um tabuleiro com um pouco de água “cozinhava” a comida já pronta. Minha função era completa: tirar da geladeira, pôr no fogão, acender a chama, esperar uns minutos, apagar o fogo, esperar esfriar, e por na mesa para me alimentar.
Eram mulheres de todo feitio que chegavam lá. Algumas chegavam antes da hora agendada para fofocar. Outras chegavam atrasadas e bagunçavam o coreto, mas nada que Néia não desse um jeitinho. Tinha uma senhora do centro de macumba da rua em frente que pintava suas unhas gigantes de um tom de vermelho vivo, carmim, que meus olhos brilhavam. Eu achava interessante, pois esta senhora, que deus ou o diabo a tenha por que já faleceu, ora saía na rua com sua entidade masculina, vestindo um lindo terno branco, blusa vermelha e chapéu de palha com uma fita também vermelha; e ora toda vestida de vermelho, com saia e blusa rodada. Eu olhava de longe com medo e curiosidade do desconhecido.
Na mesma fila de sábado para o tratamento das unhas ia senhoras crentes. D. Juraci, por exemplo, que pintava sempre suas unhas com um tom de areia, sem graça. E a D. Dagmara, que gostava de alguma cor “sóbria” bem escura. As outras preferiam cores clássicas. Tinha uma senhora cujo nome não me recordo, que gostava que suas unhas fossem pintadas com preto. Durante a semana, nos finais da tarde, quando eu andava de bicicleta pelo bairro, a via em frente a sua porta, sentada em uma cadeira de plástico com um copo de café em uma mão e um cigarro aceso na outra. Típica personagem suburbana.
Penso que, na minha memória construída, todas as mulheres tinham suas cores preferidas. Recordo-me de ir às sextas à farmácia com minha mãe para comprar os esmaltes que estavam no fim. Outras chegavam com seus próprios esmaltes. Minha mãe fazia os tratamentos de unha e usava a tinta que elas levavam.
Eu, vez e outra, olhava aquelas cores nas pontas dos dedos com uma dose de vontade. Sempre fui uma criança viada, isso é fato. Mas ter as unhas pintadas estava para além de gênero e sim ter um traço de cor no corpo. Sempre fui uma criança viada e artista. Cores e brilhos sempre me foram chamativas. Mas, como um bom menino suburbano, eu tentava me esconder em práticas lúdicas próprias para meninos.
Às vezes, para ficar perto dos esmaltes e observar o ofício materno, me sentava ao lado de minha mãe, no chão, para organizar sua bolsa de trabalho. Organizava-os cromaticamente.
Hoje tenho meus esmaltes de cores fortes, fracas e brilhantes.
Estou com as unhas bagunçadamente pintadas de vermelho, mas se eu tivesse a oportunidade de aprender o ofício quando eu estava ali disponível, com certeza, teria maior zelo ao retirar o excesso do esmalte que teima cobrir a banda do dedo.
Ao lambuzar essa parte das mãos com o pigmento, uso como recurso de acionamento de memórias. A potência da cor que brilha na ponta dos meus dedos está carregada de saudades e afetos. Ter as minhas unhas com essa cor me trazem para perto minha avó, D. Dézia, e suas 10 unhas pintadas de vermelho obsessão.
Eu só queria ser uma criança viada, artista e colorida. Se isso não me foi permitido naquele momento, o faço hoje, numa noite de sexta-feira, com gosto. Hoje, gosto de ter barba e os dedos pintados de vermelho.
Vinicius Monção é professor, pesquisador, artista plástico, aspirante a músico de carnaval e viajante profissional.