Construir Resistência
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Uma tribo feroz

Por Helvidio Mattos

 

No mês de outubro de 2015 eu, jornalista, fui cobrir em para Palmas, capital do Tocantins, a primeira edição dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas. Vinte e cinco países dos quatro cantos do mundo se fizeram representar no evento que tinha no cardápio pouco mais de 10 modalidades esportivas. Uma das que mais me impressionaram foi o cabo de guerra quando da disputa entre os temíveis Maiori, da Nova Zelândia, e os bravos Xavante, do Mato Grosso.
Naqueles nove dias aprendi muito sobre pinturas corporais, sentimentos de derrota e vitória, e especialmente sobre a necessidade de união dos povos. Para meu espanto aprendi também que o Brasil de 2015 contava com 305 etnias indígenas falantes de 274 línguas diferentes.
Nos últimos dias de outubro uma notícia vinda de Brasília caiu feito bomba entre os indígenas nativos da terra brasileira. Uma comissão especial da Câmara dos Deputados acabara de aprovar a Proposta de Emenda à Constituição 215, que tira do Executivo e passa para o Congresso a decisão final de demarcar terras indígenas, a titulação de territórios quilombolas e a criação de unidades de conservação ambiental. Um prato cheio para a bancada BBB [boi, bíblia e bala].
No palco principal dos Jogos e também em outros cenários, jovens indígenas mulheres e homens interromperam as atividades esportivas carregando cartazes com inscrições contra a PEC 215. Procurei algumas lideranças para colher depoimentos sobre a situação. Paulo Pankararu afirmou que a vitória da bancada BBB significou não só uma derrota pontual para os povos nativos, mas a necessidade de os indígenas continuarem na luta pela terra e pela sobrevivência, batalha que eles enfrentam desde o ano de 1.500.

Viver sob ameaça é o destino que o poder do homem branco reservou para eles. Sempre foi assim, mas uma tribo se destaca nesta história de resistência. Li na Revista Brasildrummond, que os Goitacá eram os mais temidos indígenas do tempo do Brasil colônia. Eram altos e fortes e conservavam seus cabelos longos para que eles parecessem ainda maiores aos olhos dos inimigos. Os ‘Waitaká’ (na língua Tupi) que habitavam a região fronteiriça dos hoje estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo viviam no litoral em terras de muitos lagos e construíam suas moradas em palafitas. Eram exímios corredores e nadadores a ponto de serem qualificados como seres anfíbios pelos colonizadores.
Estes indígenas de aparência e comportamento selvagens protegiam seu território à maneira deles. Jamais estabeleceram contato direto com os portugueses. Arredios e agressivos, os Goitacá eram também canibais e se alimentavam da carne dos inimigos abatidos por eles.
Relatos do Frei Vicente de Salvador revelaram o ritual de passagem de um jovem goitacá para a fase adulta. Ele tinha que mergulhar no mar em busca de um tubarão e deveria retornar trazendo as entranhas e os dentes do bicho (estes serviriam para fazer colares numa demonstração de masculinidade).
Definidos por historiadores como a tribo mais selvagem que já existiu por aqui os Goitacá tinham na ferocidade seu principal atributo. Atacavam tropas e instalações portuguesas sem o menor temor e metiam tanto medo em outras tribos que estas, aliadas aos colonizadores, se recusavam a participar dos combates.
Chegaram a estabelecer comércio com os portugueses pelo sistema de trocas. Deixavam à uma distância segura em um lugar mais elevado e limpo, mel, cera, pescados, caças e frutos e lá de longe observavam os inimigos fazer a troca com enxadas, aguardente e miçangas.
Este tipo de comércio resultou naquela que pode ser considerada a primeira guerra biológica da história da humanidade. No lugar dos produtos costumeiros, os portugueses, vítimas de uma epidemia de varíola, deixaram as roupas dos mortos pela doença. Ao recolherem, os indígenas foram contaminados provocando o extermínio de 12 mil goitacás e a extinção da etnia.
Para combater a ignorância de quem pede intervenção militar com o ser abjeto que habita a casa de vidro no poder, nada melhor que o povo brasileiro ser contagiado pelo espírito guerreiro dos Goitacá.
Sejamos nós uma tribo feroz.

 

 

Helvidio Mattos é jornalista nascido em São Paulo, capital. Cobriu 7 Copas do Mundo, 5 Copas Africanas e 6 Jogos Olímpicos, além de centenas de jogos do Interior. Diz que era e ainda é REPÓRTER.

“Andei pelos becos da favela e pelo tapete vermelho dos palácios com a mesma dignidade e respeito. Sempre soube onde pisar. Em minhas andanças por aqui e por lá sempre me indignei diante da injustiça.
Hoje, já aposentado na profissão, sigo sendo REPÓRTER.
Da vida!”

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