Construir Resistência
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Uma história: Dia do índio deveria ser todo e qualquer dia

Por Walter Falceta

Este 19 de Abril realmente me incomoda, por mais que agregue boa iniciativas e nobres discursos em defesa dos direitos dos povos originários.

Porque esta terra, especialmente esta “terra sem males”, no epílogo geográfico do Peabiru, tinha agentes milenares da curadoria da Terra, que viviam em harmonia com a floresta e com as pessoas não humanas.

A chegada a estes rincões se deu depois de milhares e milhares de anos de caminhadas comunais, desde a ponta gelada do Oriente. Trata-se do maior trajeto civilizatório dos sapiens no planeta azul.

A grande irmandade indígena não pode ser reduzida à exoticidade buscada pelos primeiros exploradores. Tampouco é para se comemorar pela utilidade de Squanto, como professor de agricultura, ou de Pocahontas, como guia de aventureiros.

A missão do verdadeiro indigenismo é restaurar direitos, territórios, propriedades e respeito por quem costurou em comunidade os dois lados do mundo.

Passei um bom tempo com os indígenas que vivem nas Missões, no RS, educando-me, por exemplo, com o bravo e terno cacique Verasundaro.

Daquele longa experiência, saudade das brincadeiras com a molecada e do futebol de fim de tarde com a juventude.

E lembro de descer com os índios à Esplanada dos Ministérios, em 2016, na grande marcha popular contra o golpe. Um rito, uma oração coletiva, um caminhar que jamais esquecerei. Isto posto, repito algumas considerações.

Nosso grande desastre foi a derrota na Guerra dos Tamoios. Uma espécie de Covid do Século XVI dizimou boa parte dos combatentes tupinambás, até mesmo o líder Cunhambebe.

Cabe refletir sobre a crítica aos jesuítas. Não fossem Anchieta e Nóbrega, o massacre final teria sido ainda maior. Sim, NÃO é bacana impor religião a ninguém. Hoje, sabemos disso. Mas o anacronismo histórico – julgar pessoas do passado remoto a partir de conceitos contemporâneos – não ajuda a compreender o nascimento desta nação.

O problema maior nosso foi o cunhadismo. Tanto índio que se tornou parente de opressor, num processo planejado de apagamento da identidade ancestral. João Ramalho não era nada burro. Nem Brás Cubas.

A derrota de 1567, mesmo com ajuda dos franceses, derrubou sobre nós um trauma, uma sensação de impotência e a percepção de que a unidade indígena seria impossível para sempre. Tibiriçá é personagem importante nesse processo de divisão, mesmo que imbuído das melhores intenções.

Basta ver aonde levou o heroísmo do irmão Sepé Tiarajú, noutra ponta do território, lá no Sul missioneiro. Ali, a briga foi boa. E a morte do guerreiro, em combate com os espanhóis, é precedida por acordo de união de povos originários e por vitórias honrosas da resistência.

Sepé é responsável por parte da altivez gaúcha. A luta dos Sete Povos, ali guaranis mais jesuítas, inspirou gente durante séculos. Sairia dali de perto, muito tempo depois, a Coluna Prestes, que não é pouca coisa na história do Brasil. Brizola reconhecia e valorizava a luta do líder indígena. E parte do MST cultua até hoje o bravo e justo índio.

A resistência “progressista” (desculpem o abuso histórico) norte-americana tem os pés calcados na Batalha de Little Bighorn, de Junho de 1876.

O FDP General Custer era um matador obstinado de indígenas. Quando atacava uma aldeia, sempre na ausência dos guerreiros, torturava e matava mulheres e crianças.

Na citada batalha, Custer perdeu e foi morto. Do outro lado, Cavalo Louco e Touro Sentado. Ora, Touro Sentado que era boa praça, generoso, inteligente, mas que fez o que precisava ser feito, seguindo a belíssima tradição Sioux de busca da justiça.

Nos Estados Unidos, todo mundo sabe que nem tudo ficará impune, porque Custer se danou um dia. Touro Sentado é uma figura excepcional, altruísta, que ajudou homens brancos pobres e famintos, tempos depois. Foi assassinado, mas segue vivo como referência da luta – mesmo que violenta – em favor do rito civilizatório.

Na terra do Tio Sam, os grandes agrupamentos indígenas, mesmo desfalcados, mantiveram-se como nações, tochas acesas das remotas virtudes humanas.

Na época da contracultura, muitos hipongos foram aprender a viver familiarmente melhor com os Cherokees, que têm uma cultura de valorização da mulher, em geral gestoras competentes do patrimônio comunal.

Assim como outros foram se educar para lidar com a natureza nas comunidades Navajo. Esses caras se comunicam com outros mundos, fazem a guarda da Terra e sabem perfeitamente onde ela se machuca e a intensidade de sua dor.

Aqui, evidentemente, há todo esse conhecimento, mas tristemente folclorizado e ridicularizado pelos próprios progressistas. Não muito tempo atrás, a própria esquerda usava o termo “tupiniquim” para nomear nossos atrasos e fracassos.

Caiapós, Xavantes, Apurinãs, Tikunas, Crenaques, Caingangues, Guajajaras e Pankararus têm MUITO a ensinar a qualquer acadêmico, de qualquer área, especialmente nas questões que misturam o mundo físico e a subjetividade humana.

Do tempo que passei com os índios, na virada do milênio, havia uma ideia diferente do jogar futebol, competitivo, mas que não deixava ninguém se sentir derrotado. Tristemente, muitos tinham perdido o próprio idioma. Antes do jogo, havia aulas de guarani.

O Brasil de hoje é um amontoado de destroços. Economia arruinada, mortes aos montes todos os dias, fascismo ignorante no poder. É fundamental, portanto, olhar para trás e resgatar a imensa sabedoria dos povos nativos.

O miliciano é o último dos bandeirantes, o último Domingos Jorge Velho, decidido a incinerar jacarandás, onças, andirobas e pacas. Mas seu maior troféu será enfiar na estaca a cabeça do último índio brasileiro, mesmo que seja um curumim. Porque seu objetivo é apagar a última memória do espírito de Pindorama.

Desfracassar o Brasil é recuperar, antes de tudo, a fé, a candura e a sabedoria dos povos ancestrais. É a antiga complexidade das coisas mais simples. É o entendimento de si, do outro, e da relação harmônica nossa com os entes naturais.

Desfracassar o Brasil é urgente. É preciso aprender como. Nas margens do Rio Yaquerana, nas últimas terras dos kaiowás de Rio Brilhante, nas pérolas aruaques da quase extinta língua terena.

Temos pouco tempo.

 

Walter Falceta é jornalista e um dos fundadores do Coletivo Democracia Corintiana (CDC)

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