Construir Resistência
Foto: Arquivo Pessoal

Uma contenda para os fortes

Por Miriam Waidenfeld Chaves

Cachoeira do Alto, com cerca de 5.000 habitantes, era um povoado localizado nas alturas da  serra da Mantiqueira, apelidada de “a serra que chora”, em virtude de suas inúmeras nascentes e riachos de água tremendamente gelada.  Esse pequeno sítio, cercado por uma mata úmida e verde escura, uma dessas que amedronta quem não a conhece, parece que cumpria sua sina, “para que nas Minas não chegassem os fracos”, conforme se dizia na época em que aquele pedaço de terra começara a ser invadido pelos famigerados paulistas atrás de ouro.

Essas peripécias da Natureza ainda tornavam-se mais flagrantes quando algum viajante se deparava com suas estradas de terra cobertas  por um cortejo de insetos peçonhentos, que exigiam  o cuidado de quem os desafiasse. Para completar, em dias de aguaceiro, a região se via inundada por uma bruma tão densa que sufocava os mais desavisados, muitos até desmaiavam.

Adentrar por essas bandas era, portanto, empreitada para gente forte e aguerrida que, sem se saber bem por que, quando ali aportava, logo ficava.

Nos idos de 1970, essa realidade praticamente não havia se alterado, pois transpor a imensa muralha verde que circundava Cachoeira do Alto  continuava a ser um perrengue, inclusive  para aqueles que ali chegavam através do único ônibus procedente da capital. Era muito sacolejo e radiador quebrado. Sem falar nas curvas enleadas que faziam até os mais fortes colocarem os bofes para fora.

Portanto, para Quinzinho, se os estrangeiros que conseguiam subir até Cachoeira do Alto eram dignos de sua admiração, igualmente  aguçavam a sua desconfiança mineira, que lhe soprava ao pé do ouvido:

– Cuidado com esse aí. Assunte primeiro, depois confie!

Quieto e taciturno, Quinzinho falava com os olhos e conhecia o som do silêncio como ninguém. Estava sempre com a camisa branca suja de barro e as botas enlameadas de tanto abrir picadas. O corpo miúdo, demonstrando uma aparente fragilidade, apenas encobria a sua rapidez em abrir caminho na mata fechada, qualidade essa que o transformou no mateiro da região.

Num sábado, após o sino da igreja  tocar as 12 badaladas do meio dia, lá estava ele na praça espreitando os passageiros que desciam do ônibus vindo da capital. Ninguém em especial, pensou, já se dirigindo para botica do pai.

Mas eis que de repente, surgiu do ônibus uma moça toda enfatiotada, acompanhada de um senhor, igualmente bem vestido, que chamou a atenção de Quinzinho.

Depois de uma semana, pouco ainda se sabia acerca desses dois. Seriam marido e mulher? E a diferença de idade entre eles? Mas, o tal do disse me disse foi tanto, que quando se descobriu que dormiam em um quarto conjugado no hotel, as beatas logo acharam um culpado para toda essa pouca vergonha: as modernidades da capital.

A partir daí, concluiu-se que o futuro de Cachoeira do Alto estava ameaçado, pois como seria possível dormir sossegado com esses dois “perdidos” por aí, saracoteando pela praça?

A solução foi colocar Quinzinho de butuca para descobrir o que os dois foram fazer por aquelas bandas. E como era bom mateiro e tinha paciência de Jó na espreita de bicho no mato, começou  a vigiar os passos do casal que, até aquele momento, sabia-se serem Dr. Isidro e Maria de Fátima Peixoto.

Distante do mato, de camisa limpa e com um velho par de sapatos nos pés, Quinzinho, entretanto, não progredia em sua investigação. Soube apenas que haviam ido à prefeitura, ao cartório e que haviam adorado o leitão à pururuca servido no El Dourado. Tudo, enfim, parecia muito estranho, e ao buscar alguma informação mais precisa,  logo lhe diziam:

– Sigilo da profissão, respondeu-lhe, por exemplo, o gerente do banco.

Dr. Isidro e Maria de Fátima, entretanto, seguiram firmes pelas ruas a resolver seus negócios. E Quinzinho, de poste em poste, esquina em esquina, foi aos poucos se convencendo da coragem daqueles dois forasteiros. Às vezes, até recebia um sorriso de Maria de Fátima, que fingindo não saber que estava sendo seguida, sorria para ele. Moça bonita essa, mas matreira também, pensava nosso mateiro, convicto de que essa estava sendo a sua encomenda mais trabalhosa.

Porém, qual não foi a surpresa dos moradores quando num belo dia, a cidade acordou em polvorosa ao notar que a placa de “vende-se” pregada no portão de ferro carcomido da mansão dos Viana não existia mais. E, mais do que isso, um enorme tapume passou a esconder a sua fachada.

À venda há mais de dois anos, sabia-se que seus herdeiros, uns covardes que abandonaram Seu Benedito Viana, bisneto de um dos fundadores de Cachoeira do Alto, sozinho em seu final de vida, estavam apenas interessados na  herança do velho. E ao se bandearem para a capital a viver às custas do café plantado pela família, todos na cidade calcularam que o fim daquela joia incrustada bem defronte à igreja, na Praça do Alto, seria trágico.

Daquele momento em diante, tudo começou a fazer sentido: aqueles dois já chegaram até ali com o casarão  comprado e estavam apenas aguardando a papelada ficar pronta para darem início a sua empreitada. Mas, indignada, Cachoeira do Alto queria apenas saber que fim teria essa edificação dos idos de 1910 que tanto a orgulhava.

As apostas estavam lançadas: as beatas juraram que ali  seria um bordel de luxo e, portanto, as rezas para Santa Terezinha, padroeira da cidade, bateram o recorde. Desejaram que o Dr. Isidro e Maria de Fátima sumissem do mapa. Os donos das quitandas acreditaram que um supermercado daria lugar à pobre mansão. E, temeram por sua falência. Os professores, gente brava e forte, que lutavam pela criação de uma Universidade Pública na região havia alguns anos, acharam que seria uma faculdade privada, resultante da política dos milicos, em Brasília. Outros, simplesmente, asseveraram que ali seria erguido o primeiro edifício da cidade.

Essa aflição durou seis meses, quando A Trombeta anunciou data e hora da inauguração dessa maldita obra através de um comunicado bastante enxuto.

No dia da festa, as beatas, Quinzinho, os donos das quitandas e muitos professores já se encontravam na praça, defronte ao coreto, onde o prefeito, D. Firmina, sua esposa, Dr. Isidro e Maria de Fátima esperavam a hora certa para dar início à cerimônia.

E não mais que de repente, o mistério se desfez quando o público, ao ouvir as palavras do prefeito, sorriu extasiado com a novidade:

– Apresento-lhes Dr. Isidro Peixoto e sua filha Maria de Fátima que, dando continuidade ao seu empreendimento familiar, aqui resolveram  construir o primeiro cinema de Cachoeira do Alto: O Cine Vianinha, em homenagem ao nosso querido Benedito Viana.

Foi uma noite memorável, de muitas palmas, alívio e confraternização.  E se, de imediato, reparou-se que o casarão fora restaurado com esmero, o filme, escolhido a dedo por pai e filha, E o vento levou, conquistou a todos, que caíram de amores por esses dois. Ambos, inclusive, concluíram que a estratégia de marketing adotada – sigilo total  – fora a cereja do bolo do sucesso da noite.

A cidade, por sua vez, ao ter compreendido que a contenda entre eles havia terminado, logo passou a bajulá-los e tratá-los como os mais cobiçados pretendentes de Cachoeira do Alto: enquanto as viúvas não juramentadas corriam atrás de Dr. Isidro, os rapazes não largavam do pé de Maria de Fátima.

Assim, aquele sítio perdido na Mantiqueira, cercado de verde, rios e frio,  largou mão das telenovelas para ir ao cinema. Planeta dos macacos, O exorcista, Sem destino, O poderoso chefão, Ensina-me a viver, Como era gostoso o meu francês e O destino do Poseidon foram bilheterias certas.

E se os filmes agradaram gregos e troianos, também foi fato que o pipoqueiro e o vendedor de algodão até enricaram, pois depois da sessão de cinema todos iam para a praça conversar sobre a façanha dos personagens.

Nota da Autora

A descrição tão linda da Serra da Mantiqueira no livro Brasil: Uma biografia de Lilia Schwarcz e Heloísa Starling inspirou esse conto, principalmente quando narro as características dessa tão magnífica serra.

 

Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ

   

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