Construir Resistência
Foto: Arquivo Pessoal

Um país dividido

Por Miriam waidenfeld Chaves

Jussara cresceu com os olhos grudados na televisão. Cantava e dançava sem parar na frente da telinha para alegria da mãe, que assim conseguiu por algum tempo  mantê-la longe das ruas.

Nascida em Niterói, Jussara sempre foi boa aluna, mas gostava mesmo era de receber prêmios.  O de melhor fantasia da festa junina da escola e o de atriz mirim revelação foram, inclusive, comemorados com bolo. Nessas horas até parecia que estava num palco de verdade.

E era justamente isso que Jussara queria. Estar no palco. Na TV e nas capas de revistas do salão de beleza da mãe.

Portanto, aos 18 anos, resolveu mudar de vida.

O conselho de sua tia Paula foi essencial. Disse o que a sobrinha queria escutar, “Você é muito boa para perder tempo na escola. E nas cartas te vejo com uma casa em Miami e tudo. Que nem artista.” Aí, logo de imediato, lembrou-se do que costumava ouvir dos amigos: “Você tem futuro.” “Você tem um jeito que conquista todo mundo.”

Assim, confiando nas cartas e no seu taco, Jussara atravessou a ponte e se instalou em uma quitinete no bairro do Catete. E enquanto o sucesso e a mansão  não vinham, trabalhava como manicure e fazia todos os cursos de teatro  possíveis.

Aos 25 anos, depois de muitos testes e figuração em novela, Jussara ainda aguardava por uma virada em sua vida, quando de repente explodiu na TV.

No papel de uma empregada doméstica, em uma novela das 20 horas, a câmera, ao captar o seu sorriso brejeiro, a catapultou para a fama. Todos queriam saber quem era aquela atriz que circulava à beira da piscina da casa da vilã, com uma bandeja para lá e para cá.

Virou mania nacional. E, para coroar, tornou-se a rainha de bateria da escola de samba mais cobiçada pelas pretendentes àquele mandato. Assim, com muito samba no pé, corpo malhado, sorriso brejeiro e fantasiada de Cleópatra, iniciou o seu reinado na TV brasileira.

***

– Hoje não tenho hora prá chegar, Maria. E mais tarde trate de pegar a Vivi na escola.

– Mas D. Jussara, essa noite era a minha folga.

– Pode esquecer. E  você também não ia fazer nada de tão importante assim, ia?

– Não, disse timidamente.

– Pronto,  resolvido. E separa logo o vestido vermelho prá mim. E cadê o Oswaldo?

– Na garagem.

Durante o trajeto para a televisão, entre um telefonema e outro, soltou:

– Oswaldo, sai logo desse engarrafamento e pega o acostamento.

– A senhora é quem manda.

– E trata de correr porque hoje a gravação começa comigo.

Assim ficara Jussara: poderosa. Com dinheiro e  fama, acreditava estar acima dos probleminhas corriqueiros da vida. E nessa onda, além de atriz, também se tornara uma excelente mulher de negócios. Tinha faro e gostava de arriscar. Separada e com uma filha, não queria saber de outro casamento tão cedo.

***

– Barroso, tudo bem?

– Tudo, mas você não está em Miami de férias? O que você manda?

– Ah, tô aqui sim, disse, pedindo um suco de laranja para a tia, que se tornara sua  conselheira. E com os pés na água da piscina, continuou: “Olha, analisei a proposta da Torres Engenharia e gostei muito. O retorno financeiro é ótimo.

– É, e os caras têm experiência no ramo. Conhecem o caminho das pedras.

– Pode, então, preparar a papelada. Tô dentro. Aliás, um dos sócios é solteiro e gato.

– Você não dá ponto sem nó, hein.

– Não mesmo. Bom, agora tenho que desligar. Bye.

A tia, que escutou a conversa, logo emendou:

– Cuidado, Jussara. Lembra do Urso, quando a gente botou as cartas no dia de seu aniversário? Ele nunca havia saído prá você.

– Ah tia, não amola. A senhora mesma já disse que toda carta pode ser interpretada de várias maneiras. E se for assim, pega lá o baralho e vamos logo tirar a prova dos nove.

– Filha, a gente não pode ficar tirando o baralho toda hora prá mesma pessoa. As cartas perdem a força. Elas não gostam.

– Mas eu não ligo prá isso, não. Pega lá, tia, reagiu Jussara.

Paula, a contragosto obedeceu à sobrinha, que não se conteve de alegria ao olhar para a Casa, o Cavaleiro, a Colheita e o Sol iluminando a toalha de veludo vermelho da tia. Não apenas certificou-se de sua decisão, como também concluiu que se encontrava diante de uma profecia: os novos negócios lhe trariam um novo amor.

Parecia que Jussara acertara, pois passou a viver como uma deusa: na TV, escolhia a dedo seus papéis, na propaganda era um dos cachês mais caros do país e com mais de 30 milhões de seguidores, seus posts, com o também famoso Léo Torres Júnior, seu marido, recebia uns 2.000 likes  por dia.

Sua tia, substituída por outra conselheira, uma taróloga badalada, no entanto continuou, em segredo, a tirar as cartas para a sobrinha. Enxergava um futuro nebuloso, como se não conseguisse obter uma resposta segura do que via.

***

Num belo dia de sol, tomando café da manhã em sua  casa em Miami, assistiu pela TV a sede da empreiteira da família de seu marido ser invadida pela polícia. Tratava-se de uma operação da Polícia Federal denominada Torre de Papel.

Devido à gravidade das provas, Jussara fora autuada como suspeita no processo. Após o julgamento, na saída do fórum, não teve dúvidas e jogou o seu sorriso brejeiro para as câmeras de todos os canais de televisão que a esperavam.

Já em casa, lançou mão de um expediente, segundo ela, infalível, para tentar reverter a sua imagem. Com a ajuda de Barroso, cujo texto, ele próprio escreveu, gravou seu primeiro comunicado desde que toda essa confusão começou:

– Errei. Errei ao me apaixonar. Não sabia dos negócios ilícitos de meu marido. De origem humilde e com pouco estudo, assinei documentos, sem saber onde estava me metendo. Mas, para não restar nenhuma dúvida, já entrei com um pedido de divórcio. Daqui para  frente, seremos  apenas eu, Vivi e Antônio, nome do filho que espero e que escolhi para homenagear meu pai, meu grande amor. Tenham uma boa tarde e fiquem com Deus.

Depois dessa, tomou um calmante e foi dormir.

No outro dia, a primeira coisa que fez foi  ligar para o Barroso, ainda da cama:

– E aí? Como a mídia reagiu? Colou?

– Ainda não sabemos. O país está dividido. Tem os que te adoram e juram que você é inocente, mas também tem  a outra metade que te acha cínica e culpada.

 

Miriam W. Chaves é contista e professora da UFRJ.

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