Um cara bacanudo para ser nosso adversário na direita

 
Na década de 1980, muitas das tardes transcorriam mornas nas escadarias que bordavam a Fefeleche. Numa delas, alguém, que já sumiu da memória, sentenciou:
 
– Voltaire, está aí o cara que eu gostaria de ver na trincheira deles.
 
Ainda precisei estudar um pouco para entender do que se tratava. Eu era novato. O filosofante era veterano.
 
Lembrei-me desse episódio hoje, quando se completam 244 anos da partida do pensador francês (1694 – 1778).
 
As ideias de Voltaire estão na base do Liberalismo, ainda que racionalista e iluminista.
 
Penso que o distinto cidadão entrega mais ênfase à liberdade do que à igualdade ou à fraternidade, e assim define sua visão de mundo. Muito do que formulou veio de John Locke, o cara do empirismo e do individualismo liberal.
 
Voltaire tinha esse saudável respeito pela ciência, curtia as descobertas de Newton e zombava dos dogmas importados da Teologia. Era mais ou menos do lado de lá, mas não navegava nas águas turvas do negacionismo.
 
Em seu tempo, obviamente, era um rebelde. Lutava pelas liberdades civis, descia a lenha no absolutismo, criticava a interferência da Igreja em questões de governo e, de forma geral, inspirou gente que faria a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos.
 
Como um cara do lado de lá, defendia o livre comércio e rejeitava o controle do estado na economia. Numa época de reis autoritários, talvez fosse até um pensamento progressista. Vale lembrar que, nos EUA, por exemplo, “liberal” é alguém à esquerda do espectro político.
 
As melhores coisas de Voltaire, no entanto, aprendi lendo – estupefato – o Cândido, uma sátira saborosa publicada em 1759.
 
Ainda carrega o peso do terrível terremoto de Lisboa e narra as aventuras de um sujeito que perscruta o mundo, enquanto recebe de Pangloss, seu mentor, os ensinamentos do otimismo determinista de Leibniz.
 
Não importava a tragédia ocorrida, sempre lhe diziam: “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”. É uma lição que tentam nos enfiar, ainda hoje, em diversas denominações religiosas, um otimismo de submissão e conformismo.
 
É bom ver como o autor expõe o patético de religiosos, pensadores, governantes e gente das forças armadas. Pela franqueza, o livro foi proibido por hostilidade intelectual, blasfêmia contra a fé e incitação à revolta.
 
A censura somente serviu para dar-lhe maior visibilidade. Aqui, fez a cabeça de nosso querido Machado de Assis, moldando trechos de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba”.
 
Até mesmo os corinthianos Mazzaropi e Adoniran Barbosa o ecoaram, na reinterpretação batizada de “Candinho”, de 1954, filme dirigido por Abílio Pereira de Almeida. Até Walcyr Carrasco, em “Eta, Mundo Bom!”, bebeu nesta fonte.
 
Enfim, se houvesse uma direita civilizada – e ela hoje inexiste – seria representada pelo espírito justo e rebelde de Voltaire.
 
Dele, fica a maior lição. Não, este não é o melhor mundo possível. E a solução está posta: “devemos cultivar nosso jardim”.

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