Por Ângela Bueno
” A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.
(Guimarães Rosa)
Tenho andado desinquieta com os rumos que tem tomado a vida no Brasil. Nas poucas vezes em que saio às ruas me deparo com um grande número de pessoa pedindo esmolas, dormindo nas calçadas. Um cenário que havia desaparecido da minha vista nos governos do #PT.
Lembro da primeira vez que meu neto, hoje com cinco anos, andando comigo nas ruas um pouco antes da #pandemia, ao se deparar com um mendigo dormindo na calçada me perguntou:
Vovó, por que ele não está dormindo na caminha dele?
Ele, pequeno, viu que não era natural ter uma pessoa dormindo na rua.
O pós golpe de 2016 trouxe as pessoas que passam fome, que estão sem emprego, sem moradia, de volta para as ruas. Trouxe o Brasil de volta ao #MapaMundialdaFome. Isso não é pouca coisa. É um retrocesso que é retratado nas ruas, para os que têm olhos pra ver.
Algumas notícias que tenho lido ultimamente têm colocado minha esperança debaixo da sola do sapato. Ainda bem que, como diz meu companheiro, la donna é mobile, pois tenho por hábito ser pessimista no pensamento e otimista na ação. Esse meu jeito de ser uma metamorfose ambulante deixa uma certeza de que, amanhã, eu volto a esperançar.
Vou destacar aqui duas notícias de embrulhar o estômago:
– com a #pandemia e o atual governo, o 1% mais rico da população abocanhou 49,6% da riqueza do Brasil. Isso de acordo com o #RelatórioRiquezaGlobal, publicado todo ano pela #CreditSuisse (Brasil 247, 24/06/2021). Essa pandemia escancarou que o capitalismo é uma máquina de engordar os milionários e moer as outras gentes.
– O epidemiologista Pedro Hallal, na #CPIdaCovid, mostrou um dado que dói na alma: em cada 5, 4 mortes poderiam ter sido evitadas se estivéssemos na média mundial. Isso se o Governo tivesse se comportado como um aluno médio, que faz o mínimo para passar de ano (não fui eu que fiz essa metáfora. Foi o próprio epidemiologista em seu depoimento), teríamos poupado 400.000 vidas!!! (fonte: TV Senado-CPI da Pandemia- # SENADO CONTA A COVID).
Só esse depoimento seria, no meu entender, suficiente para que se parasse tudo e que esse governo fosse afastado e respondesse por tantas mortes desnecessárias se tivesse comprado vacina em tempo hábil, entre outras condutas preconizadas pela #OMS no combate à pandemia da#Covid-19. Somado a essas notícias outras tantas já saíram, que mostram a corrupção nas compras de vacina, preços superfaturados e outras coisas mais que levaram o povo de volta às ruas contra tudo que está acontecendo e pedindo #ForaBolsonaro.
Aí eu pergunto até onde irá a surdez, a leniência, a conivência dos outros poderes legislativo e judiciário com o poder executivo e com a vida do povo brasileiro? Aqui caberia a mídia, o empresariado. .. mas irei me ater aos poderes da república brasileira.
Pensando sobre essas questões reli o texto de #Freud “Por que a Guerra?” (1932). Esse texto foi uma resposta à carta que #Einstein lhe endereçou quando, em 1931, a Liga das Nações solicitou que intelectuais trocassem cartas sobre temas de interesse geral dos povos. Einstein, um dos primeiros a ser convidado, escolheu Freud como seu interlocutor.
Recortei as partes que dizem respeito ao surgimento do direito na visão de Freud, no intuito de buscar entender a questão que formulei acima sobre a leniência dos poderes executivo e judiciário com todo esse desgoverno, tão nocivo ao povo e ao Estado brasileiro. Leia e diga se concorda ou não comigo.
Freud nos diz que existe uma relação intrínseca entre direito e violência, ainda que à primeira vista pareçam termos opostos. O direito surge em resposta à violência dos fortes sobre os mais fracos. Era através do emprego da violência que se resolviam os conflitos de interesse entre os homens: que no primeiro momento era física e direta. Vigorava naquela época a lei do mais forte.
Com a introdução das armas a superioridade intelectual entra em jogo. Mas o propósito da luta permanece o mesmo: a parte perdedora tem que abrir mão de sua reivindicação ou posição. Isso é alcançado de modo mais eficaz e completo se a violência elimina, pela morte, o seu adversário. Dessa morte são advindas duas vantagens: – o inimigo não vai retornar sua hostilidade ; e, sua morte, certamente, irá desestimular os outros a seguirem o seu exemplo. Isso vimos na história recente nas ditaduras militares da América Latina e todos os países, onde vigoram ou vigoraram regimes ditatoriais.
Outra maneira de lidar com o inimigo vencido, segundo o autor, é que ele pode ser também subjugado, amedrontado e deixado com vida, para ser empregado em serviços úteis. Essa também é uma saída que a história nos mostra ser bastante utilizada, para tratar povos perdedores.
Lembrei que muitas vezes presos políticos, como #Mandela, por exemplo, cumprem uma rotina de trabalhos forçados em condições sub humanas, cujo proposito final é humilhar, acabar com a saúde do perdedor, além de quebrar seu espirito. A história é cheia de exemplos de vencidos que se tornaram escravos, estados totalitários que eliminam seus opositores, …
Freud nos diz que, ao poupar o inimigo, o vencedor sacrifica parte de sua segurança, pois pode haver um desejo de vingança por parte do vencido. A violência, para o autor, só poderá ser derrotada pela união de vários fracos e o poder daqueles unidos passa a representar o direito, que é o poder de uma comunidade. Todavia dois fatores são fundamentais para que se dê essa passagem: a coação da violência e as identificações entre os membros da comunidade.
Essa união tem que ser constante e duradoura. Só desse modo se consegue a transferência de poder de um forte para as Leis, que vão reger a comunidade. Abro outro parêntese aqui para reforçar que é pela união dos mais fracos, identificados entre si, que se passa para o regime da Lei, da Justiça, do Direito.
Freud relembra então que a comunidade abrange elementos de poder desigual, homem e mulher, pais e filhos… e conclui dizendo que o direito da comunidade se torna a expressão das desigualdades das relações de poder existentes em seu interior. Que as leis são feitas por e para os que dominam, reservando pouco direito aos dominados. E destaca duas consequências advindas desse fato:
1- a tentativa de alguns Srs se colocarem acima das restrições vigentes para todos, retrocedendo do domínio do direito para o domínio da violência.
Não é isso que vem acontecendo no Estado Brasileiro desde o golpe de 2016? A Lei maior do país, a #Constituição de 1988, vem sendo desrespeitada, por todas as instâncias do governo. O presidente eleito se gaba de burlar as leis, desrespeita e debocha de outras instâncias do poder, compra vacina superfaturada, tapa a placa de moto em motociata, financiada com dinheiro público… Faz, intencionalmente, perfomances bizarras, enquanto desmontam o Estado Brasileiro, deixando o povo sem emprego e renda, em meio a uma pandemia onde mortes poderiam ser evitadas? E se mantém no poder apoiado pelos mesmos que deram o golpe em 2016.
2. A outra consequência do direito servir aos que dominam, de acordo com o texto de Freud, são os constantes esforços dos oprimidos para conquistarem mais poder. E que isso se torna significativo quando ocorrem na comunidade deslocamentos na relação de poder. A classe dominante, de modo mais frequente se recusa a aceitar essa mudança, podendo ocorrer uma rebelião, uma guerra civil, ou uma situação temporária de suspensão do direito, com novos ensaios violentos, após os quais é instalada uma nova ordem jurídica. Assistimos constantemente setores oprimidos lutarem por mais direitos: mulheres, indígenas, LGBTQIA+, idosos, trabalhadores,…
Freud continua dizendo que não existe perspectiva de abolir as tendências agressivas do ser humano. Também, que é um erro não considerarmos que o direito era força bruta e que, ainda hoje, não pode prescindir do amparo da força.
Com esse texto quero reafirmar o já sabido: que o direito, a justiça estão sempre a serviço dos mais fortes, hoje representado pelos mais ricos. Por aqueles que no meio dessa tragédia humanitária toda ficam ainda mais ricos.
O que nos faz constatar que o #neoliberalismo é uma máquina de engordar os mais ricos e de moer as outras gentes. E o torto direito responde a essa lógica e representa o direito desses mais ricos em detrimento à justiça para todxs.
Ângela F.V.Bueno é psicanalista e ceramista. Nas décadas de 70- 80 trabalhou na Caritas Arquidiocesana de Vitória. Trabalhou também na Secretaria de Estado da Saúde- ES, contribuindo para a implantação do SUS em seu estado. É professora aposentada do departamento de Serviço Social da UFES. É mestre em Teoria e Clínica Psicanalítica pela UERJ.