Som nosso de cada dia

Dia após dia…

Por Carlos Monteiro

 

Quantos sons fazem parte da nossa vida? Quantos sons fazem parte da nossa história? Quantos chamados fazem parte do nosso pertencimento, da nossa memória-sonora-afetiva? Não são ruídos, são sons, chamados, muitas vezes burlescos, insana sonoridade, reminiscências especiais.

 

Lá em Santa, recordo, ainda quase rebento, da ‘Vaca Leiteira’. Um pequeno caminhão tanque adaptado que vendia, obviamente, leite de porta em porta. Não prezava pela higiene. O motorista era ao mesmo tempo também o atendente e o caixa. Consistia em levar seu vasilhame, que era abastecido por meio de uma torneira na traseira do veículo. Foi proibido logo depois. Se descobriu que misturavam uma série de ‘insumos’ ao lácteo: urina das vacas, formol, água e por aí vai. Foi substituído pelo leiteiro da Vigor, com garrafas fechadas por pequenas lâminas de alumínio. O produto passou a ser pasteurizado. Deixava-se a garrafa vazia com um passe adquirido previamente, que era substituída por uma envasada. Mas, o que isso tem a ver com som? O pequeno caminhão contava com uma buzina em som de mugido que anunciava sua presença. Muuuuuuuuu!

 

Outros mascates interessantes, retratados no início do século XIX por Jean-Baptiste Debret e nos anos 1910 pelo fotógrafo Marc Ferrez, tinham ‘chamamentos’ muito peculiares. Era no gogó, não tinha essa de alto-falante, de amplificador, de música-tema. Quando muito lançavam mão do megafone em latão ou do som tirado da pedra de amolar. Os afiadores, mais harmoniosos, chegavam à solar algumas músicas, melodias em puro silvo. Um deles tocava os hinos dos times de futebol carioca.  O gazeteiro da Casa do Pequeno Jornaleiro e seu ‘exxxxxtra, exxxxtraaaaa’. O verdureiro e seu cesto recheado de hortaliças e um tonitruante ‘verdureiiiiiiiiiiiiro’, o triciclo do tripeiro que gritava ‘oiii o bucho, tem bofe, tem tripa, tem coração, rimmm e figoooooo’! Um dia, atrevido, fui até ele e, com jeito, expliquei que não era figo e sim fígado, no que fui retrucado:

— Ó menino, achas que sou burro? Estou a saber. Assim chamo mais atenção.

 

 Sábio, fazia merchandising sem sabê-lo.

 

 Tínhamos o garrafeiro, maldosamente apelidado de ‘burro sem rabo’ e seu sotaque transmontano; ‘garrafeiiiiro’, heranças portuguesas, muitos fizeram fortunas montando espaços para compra de recicláveis. Foi o precursor do ‘carro do ferro-velho’ está chegando à sua porta. Compro geladeira velha, ar-condicionado velho, latinha de cerveja velha… tenho dúvidas; não compra de refrigerantes? Alguns se modernizaram e oferecem serviço de ‘limpeza do quintal catando todas as tralhas’. Música não pode faltar, na maioria das vezes gospel… “…uma nova história…/…E tudo aquilo que perdido foi…”, de Fernandinho, troa nas trombetas das Kombis dos cacarecos perdidos num canto qualquer da existência passada. Romildo Guerrante e Christina Castello, dois pândegos, foram ao reciclador motorizado para saber se comprava ‘mulher velha’. Receberam um sorriso em troca.

 

Música marcantes fizeram história e, por outro lado, quase acabaram com ela. “Für Elise” de Ludwig van Beethoven infernizou nas chamadas em espera das URAs – unidades remotas de autoatendimento – quanto nos carros da Ultragás. Um sacrilégio em 120 decibéis, atualmente substituída por versões tecnopop, que finalizam com um sonoro ‘oluuuugássssssss’ ou na versão “New Age” ‘ultragássssss’, quase uma Enya.

 

Com a motorização vieram o ‘carro da pamonha’; ‘olha as pamonhas quentinhas, feitas do puro milho-verde’! O ‘carro do ôvo’; ‘…são trinta ovos, eu disse trinta ovos branco por dezzzzz Reais freguesa’! O ‘carro do pão’; ‘ é o carro do pão. Três pacotões de pão por dez Reais’. O ‘caminhão da laranja’, o ‘caminhão da banana’, o ‘caminhão do abacaxi’ que aprimoraram para o ‘caminhão das frutas’. O berreiro sempre o mesmo; ‘ olha a laranja, o abacaxi, olha as frutas direto do produtor. Eram vendidas no cento. Vieram para tudo: peixe, queijo e goiabada, nosso delicioso Romeu e Julieta, camarão… Há outros até engraçados como o ‘carro da Cândida’. Não se trata da fofoqueira televisiva dos anos 1960, retratada por Roberto Carlos em “Mexericos da Candinha”. Cândida, em São Paulo, é a água sanitária carioca. Imortalizou-se com esse nome por conta de uma marca pioneira, pura metonímia. O tal carro ‘está chegando a sua rua freguesa’, oferece os mais variados produtos de limpeza, feitos, segundo eles, de forma artesanal.

 

 

Atualmente a coisa está eclética e com vários meios para transportar os produtos ou serviços; o padeiro e sua buzina do Chacrinha vendedor de doces sonhos físicos e engordativos.  Impressionante que ele nem precisa gritar mais, basta uma buzinada, em sua bicicleta provida com dois jacás, que imediatamente vai para o trono sem desclassificação. O ‘gol das quentinhas’ por módicos ‘dez Reais e dois pedaços de carne’, o gladiador do pão nosso de cada dia, com sua biga pelas ruas de Botafogo e ‘armadura’ formada por tampinhas de alumínio próprias para a proteção de ralos das pias, vendendo toda sorte de bugigangas úteis. Uma espécie de loja do 1,99 ambulante. O Vassoureiro e seu sortimento completo de itens, inclusive os antiquados espanadores, que mais deviam chamar-se espalhadores. A carrocinha de sorvete e as famosas ‘cinco bolas sortidas por um Real’. O paneleiro que é uma mão na roda para a dona de casa. O carro de som anunciando produtos e serviços. Um verdadeiro shopping a céu aberto em delivery.

 

Para quem mora próximo a uma delas, os sons das feiras-livres são arrebatadores e cheios de chavões lugar-comum: ‘mulher bonita não paga, mas também não leva’. ‘Na minha mão é mais barato’. ‘Baixooouuuu, agora é três’!!! ‘Chegou o pião mágico’. Qualquer criança brinca e se diverte, não requer prática nem tampouco habilidade, é lançamento…’. Esse comércio tem lá seu encantamento. Quem nunca foi comer uma cavaquinhas na Feira da Glória ao som de samba de mesa ou um pastel ouvindo chorinho na Feira da Glicério? Caixinha obrigado!

 

Com o advento dos carros por aplicativos surgiu uma nova profissão: agenciador de passageiros para táxis. O sujeito fica ali gritando feito um louco ‘táaaaaaxi senhor, táaaaaaaaaaaaaaxi senhora?’ a fim de cooptar usuários para o serviço em ponto próximo. E como gritam.

 

Poderia haver o carro do silêncio, ouvidos agradeceriam.

 

 

Carlos Monteiro é jornalista e fotógrafo.

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