Por Walter Falceta
É um absurdo que brancos da elite dominante determinem os pilares da luta dos oprimidos escravizados.
Como não faz sentido que homens representantes do poder patriarcal determinem modelos de ação para o ativismo feminista.
Simples assim. Existe como pressuposto natural a liderança histórica de quem sabe qual sapato machuca o calo. E assim a sociedade se ajusta em seus papéis no processo civilizatório.
Ao mesmo tempo, é preciso, por exemplo, que brancos – e todos os representantes do maravilhoso coquetel biológico sapiens-sapiens – compreendam o esforço antirracista e dele participem, seja na militância ativa, seja no debate que altere as relações sociais.
O machismo não termina se os homens não se desconstruírem e se não somarem no empenho por igualdade.
No entendimento da identidade e da orientação do outro, o indivíduo cisgênero pode e deve constituir assumir seus encargos no combate aos exércitos infames da homofobia.
E uma cidade, em toda sua complexidade, exige respeito, interação e sinergia contributiva entre o centro e a periferia. As melhores urbes se entretecem em pactos de reconhecimento e colaboração ativa.
Uma leitura de Martin Luther King, Jr., por exemplo, mostra essa compreensão avançada da parceria fraterna na busca da justiça. Ele lidera ao lado de outros oprimidos, mas cerra fileiras, sempre que possível, com lideranças religiosas e cidadãs de matrizes não africanas.
O correto e necessário protagonismo, no entanto, vem sendo deturpado e reconfigurado como um novo instrumento na definição hierárquica de poderes políticos localizados, em que a origem de pertencimento é confundida com o conceito de superioridade moral e infabilidade epistêmica.
Os direitos de autorrepresentação devem estar garantidos. Deve-se reconhecer a legitimidade do “falar por si mesmo” dos oprimidos, de forma que exprimam o que sentem e como sentem no redemoinho massacrante das desigualdades.
Mas essa construção necessária não deve jamais reproduzir o autoritarismo de interdição dos modelos vigentes, em que o outro jamais pode expressar seu argumento, seja de crença, seja de circunstância.
Há razões possíveis em todos os discursos, naquele do homem precarizado branco da favela, no negro cis da classe média, no transgênero andino que agora bem se emprega numa grande corporação. São inúmeros os cruzamentos pluri-identitários possíveis na geografia das modernas sociedades.
O grande entrave ao entendimento é o constructo de repetição na modelagem do arbítrio, em que pertencer a determinado grupo estabelece um suposto acesso privilegiado à verdade e a sua enunciação.
Esse recurso de dominação, emprestado à tradição, queima pontes, promove distanciamentos e fomenta o ressentimento, mesmo no micro-universo das relações humanas.
Parte dos “cancelamentos” deriva da incompreensão da realidade cultural do outro, de seu léxico, de seus costumes, de crenças estabelecidas no intelecto desde a infância.
Parte dessas proscrições é implacável com gente de virtude, que nesta ou em outra questão, se encontra ancorada na ignorância do preconceito.
São conflitos que podem ser resolvidos justamente pela concessão da fala, pela interlocução dialética e pelo natural aprendizado da oposição dinâmica de ideias.
O bloqueio, o bullying, o cancelamento, a humilhação e o descarte, ao contrário, conduzem ao acirramento do confronto. Não se pede que sejamos tolerantes com a Ku Klux Klan, com os que agridem LGBTQIA+, com fascistas negacionistas ou machos agressores de mulheres. Contra esses, a lei. Se não funcionar, porrada em legítima defesa.
Há, no entanto, inúmeros tons de cinza na escala quase infinita do pensamento e da inevitável dissonância cognitiva. No campo do gênero e da sexualidade, por exemplo, parte dessas modulações do preconceito tem origem na criação familiar e na educação formal.
Há exemplos fartos de que a alteridade pode constituir uma pedagogia que, sim, reformule visões do mundo. É preciso que um se projete na realidade do outro, mesmo contemplando a discordância.
O local da fala, que se garante na participação civil, se degrada quando abraça o dogmatismo, o fundamentalismo e a intolerância. Perde em qualidade ainda mais quando afasta imediatamente o outro, atribuindo-lhe, pela aparência, a condição insuperável de inimigo.
Este vício extrapola as categorias já mencionadas e pode abranger também o suposto lugar de fala da juventude, que se transforma em brutal e barbárico ageísmo e etarismo.
Um autêntico lugar de fala deveria ser, portanto, ao mesmo tempo, um lugar de escuta. Em nome da isonomia, não deveria, pois, virar lugar de monopólio do discurso.
Essas deturpações se manifestam na concordância e validação automática das teses e propostas de qualquer membro do grupo demandante. E na desconsideração imediata de qualquer motivo daqueles do outro lado da muralha.
A ideia é: se a classe do outro é opressora, qualquer membro desse segmento deve ser vigiado, calado e eventualmente punido, mesmo que apresente suas razões, suas dúvidas e até mesmo sua disposição para compor na lida progressista.
Se um segmento não teve a chance histórica de falar, é fundamental que sua redenção se dê pela quebra desse paradigma, servindo de base para uma nova estrutura pluralista, acolhedora da diversidade e calcada na democracia que sustenta a liberdade de expressão responsável.
Enfim, este é um momento de embates severos, nos quais é necessária a expressão dos oprimidos e a difusão de suas demandas.
Ao mesmo tempo, a esperança de dias melhores reside na rejeição ao modelo antigo, dos monopólios autoritários de poder e fala, que marcaram a sociedade colonial e o modo burguês de pensar.
E isso se obtém pelo exercício generoso da empatia. Revolução não é segregar. Revolução é incluir, cada vez mais.
Walter Falceta é jornalista e um dos fundadores do Coletivo Democracia Corintiana (CDC)