Construir Resistência
Foto: arquivo pessoal

Sobre mim, sobre Cora Coralina, sobre Maria Grampinho, sobre nós

Por Beatriz Herkenhoff

Hoje ninguém pode sentar no meu sofá, mas, abro minha casa para que o afeto circule com intensidade. Enfraqueço as sombras e fortaleço a luz da minha condição humana.

A casa vazia.

Vazios que se expandem…

Somos seres insatisfeitos e errantes, nômades à procura do amor. Temos vazios infinitos!

Nosso vazio existencial é provocado pela consciência da nossa finitude e fragilidade.

Para não realizar esse encontro comigo mesma, encho minha vida de atividades e compromissos. Passo o dia correndo.

Correndo de quem? Para onde? Para que?

Não temos permissão para relaxar e ficarmos sozinhos.

Transferimos para o outro a responsabilidade por preencher nossas carências, frustrações e solidão. No entanto, essa é uma tarefa impossível, pois, a semente de amor e de plenitude que tudo transforma está em nós (e em Deus).

Só quando descobrirmos essa fonte que brota de nosso interior poderemos nos relacionar sem projetar no outro aquilo que é nosso. Essa conquista permitirá uma experiência com o outro sem controle, sem cobranças e sem expectativas.

Com o #isolamentosocial exigido pela #pandemia, os vazios se ampliaram, pois, não podemos receber em nossa casa aqueles que amamos. Diante da tristeza provocada por esse afastamento, somos convidados a mergulhar no nosso eu, dialogar com nossos vazios.

O isolamento tem possibilitado o encontro de muitos com seu mundo interior

Aprender a gostar da nossa companhia é um desafio permanente.

Quando visitei a casa de #CoraCoralina, em Goiás Velho, fiquei muito emocionada em vários momentos, mas, o que mais me tocou foi a história de #MariaGrampinho. Andarilha, descendente de escravos, tinha o costume de agregar à sua roupa tudo o que encontrava pela frente, como: plásticos, retalhos e botões velhos.

Maria Grampinho morou durante o final da década de 1940, no porão da casa de Cora Coralina, dormindo ao lado de uma bica d’água. Cora Coralina considerava-a uma amiga, e escreveu poesias sobre ela.

Afirmava: “de que adiante ter uma casa grande; bonita; espaçosa; cheia de móveis e louças; com quintal, flores e árvores frondosas, se essa casa está vazia de amor? Acolher Maria Grampinho em minha residência dá um sentido especial para a minha vida e preenche minha casa de amor”.

Penso como Cora Coralina

Minha casa sempre foi aberta para receber os amigos do meu filho, minhas sobrinhas (sobrinhos), afilhados, familiares e amigos.

Diante de minhas portas abertas, eu converso com Cora Coralina. Gostaria de ser tão generosa quanto ela, gostaria de receber uma andarilha.

Mas, sei que o fato de acolher os que amo, com generosidade, faz com que as paredes de minha casa fiquem iluminadas. E sei que deixo uma semente especial de confiança e otimismo naqueles que circulam por aqui. Também saio enriquecida com a experiência de cada um.

Com a pandemia não recebi mais ninguém. Por segurança, nem meu filho e nora, que moram longe, puderam vir.

Saudades imensas

Tive que viver o luto do vazio deixado por tantas ausências. Mas, como Maria Grampinho, fui agregando ao meu corpo tudo que encontrava pela frente: o cheiro de cada um, seu jeito de ser, de sorrir, sua energia de vida.

E todos levaram um pedacinho de mim. Então, espero com serenidade e gratidão o tempo em que poderão voltar.

Para impedir que a tristeza tome conta

Sou chamada nesse momento, a ocupar os espaços de minha casa com novos significados e presenças virtuais. A casa é o lugar dos afetos, dos vínculos, das raízes, das memórias, da continuidade. Lugar de passagem, por onde transitam as gerações com suas histórias, dores, conquistas, superações e capacidade de amar.

Hoje ninguém pode sentar no meu sofá, mas, abro minha casa para que o afeto circule com intensidade. Enfraqueço as sombras e fortaleço a luz da minha condição humana.

Realizo encontros online com diferentes grupos de amigos. Participo também de grupos de resistência que lutam pela vida, por justiça e pela democracia.

Encho minha casa de plantas e flores. Procuro colorir e alegrar os ambientes. Rasgo papéis. Desfaço de tudo que acumulei desnecessariamente. Mudo os móveis de lugar.

Tenho participado de inúmeras campanhas de solidariedade. Não posso ficar indiferente a tanta dor. Permito que a empatia me leve aos que mais precisam. E cada um que eu acolho é Maria Grampinho que estou trazendo para dentro de minha casa.

Eu tenho o privilégio de ter minha mãe com 86 anos. Faço-me presente na casa dela, quando vivemos momentos de muito amor e alegria.

Com o tempo mais livre (principalmente os que aposentaram), os dons e os talentos estão desabrochando com força. Muitos fazem comidas maravilhosas, bordam lindamente, fazem croché, artesanatos com madeira, com mdf, peças em pino. Pintam quadros que nos impactam por sua beleza e delicadeza. Trabalham com cerâmicas (transformando-a em pão, ao participarem da campanha Paz e Pão).

Tiram um tempo para a oração e mergulho em Deus. Esvaziam a mente de toda preocupação e ansiedade.

Recuperam móveis antigos, pintam paredes, ouvem músicas, dançam e leem. Brincam com as crianças, com jogos de tabuleiro, acompanham as aulas virtuais.

Realizam projetos culturais  à distãncia, mostras de filmes, documentários, poesias, contos, Festa literária de Vargem Alta entre outros.

Caminham, fazem exercícios, veem filmes, participam de grupos de literatura, de coral, de projetos culturais, de movimentos sociais e políticos. Todos on line, protegendo vidas e a própria existência.

Cuidam de seus jardins, hortas e orquidários. Investem em sua profissão, participam de cursos e de especializações.

As paredes das casas ficam iluminadas com cada gesto de cuidado que direcionamos ao outro e a nós mesmos.

Façam essa experiência de ocupar os vazios realizando um encontro com você. Ela é fonte de plenitude e gratidão.

Partilhem também suas vivências! Vamos criar uma ciranda de mulheres e homens sábios e amorosos. Vamos resistir a tudo que quer nos abater e desanimar.

Olhar para a nossa história e para a história do outro nos estimula a sair do lugar da paralisia e do medo.

Não podemos esquecer que muitos passaram a trabalhar home office e têm suas vidas sobrecarregadas pelo excesso de tarefas e demandas, o que poderá ser tema para outra crônica.

Beatriz Herkenhoff é doutora em serviço social pela PUC São Paulo. Professora aposentada da Universidade Federal do Espírito Santo.

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