Por Desirée Cipriano Rabelo
Venho de uma geração que escrevia diários, cartas e compunha versos de pé quebrado…
Coisas que certamente caíram em desuso. De todas essas, a que mais deixou marcas e lembranças foram as cartas. Explico-me.
Desde muito cedo comecei a corresponder-me com minhas tias que viviam no interior de Minas Gerais. Aos 12 anos, fui viver noutro Estado, deixando para trás as tias, os primos e amigos.
Sem as facilidades de hoje, o jeito de comunicar-se eram as cartas.
Lembro-me de pelo menos duas grandes amizades que começaram com uma cartinha deixada em minha bolsa: era um convite para uma conversa. Outras tantas amizades jamais saíram do papel, isso é, nunca houve um único encontro presencial.
Com o tempo a relação dos correspondentes só foi aumentado.
Passou a incluir também os namorados. Longos e inocentes amores que se alimentavam de folhas e mais folhas de papel. Como não lembrar de Fernando Pessoa… “as cartas de amor são ridículas!” Ainda bem que o poeta mesmo reconhece que “afinal só as criaturas é que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas”.
Mas, entre escrever e receber uma carta, havia um hiato.
Um tempo de espera e expectativa que é muito significativo. E foi fundamental em minha formação. O cálculo era mais ou menos assim: coloco a carta no correio hoje, passarão cinco dias até ela ser entregue, depois entre cinco a 10 dias para que a resposta seja escrita e outros cinco dias para a carta chegar! E a partir daí começava a espera do carteiro que, por fim, tiraria de sua bolsa a mensagem esperada.
Passei muitas horas de minha vida à espreita do carteiro.
E aqui outra pausa, para uma música-lembrança, na voz de #IsaurinhaGarcia, que chega sem pedir licença: “Quando o carteiro chegou e meu nome gritou com uma carta na mão. Ante surpresa tão rude, nem sei como pude chegar ao portão”.
Diante do grande volume de correspondência e de sua importância para manter minhas relações afetivas, era preciso usar a criatividade. Lembro-me de ter ousado em cores, colagens e todas as artes possíveis num tempo em que papéis ou envelopes decorados não existiam. A maior delas foi escrever uma carta gigante para um namorado durante o período de férias: atrás de um cartaz de promoção de revista fiz um calendário e a cada dia registrava meus pensamentos.
Bom, ousadia mesmo, na verdade uma ilegalidade, foi o jeito que descobri para manter meu vício epistolar: limpava cuidadosamente os selos carimbados das cartas e os usava para enviar as minhas próprias. Bom, confesso a infração porque imagino que já prescreveu. E certamente os #Correios têm problemas mais graves para resolver.
Pergunto-me o que ficou no lugar do hábito de corresponder-se por cartas.
Será que alguma das modernidades substitui este jeito de se relacionar, registrar pensamentos, trocar de informações, ideias e sentimentos? Talvez o “registro” seja a palavra-chave. Isto é, guardadas, as cartas tornam-se acessíveis a outros leitores.
Perenizam e expandem a conversa. Melhor ainda se o diálogo escrito acontece entre pessoas inteligentes, trata de temas relevantes ou atemporais.
Os cristãos seguem relendo e meditando sobre as cartas escritas por #Paulo às comunidades de Coríntios, Efésios, Filipenses etc. Provavelmente elas inauguram uma tradição que as editoras, felizmente, tratam de alimentar. De fato, são muitos os livros publicados com a correspondência de figuras de renome.
Cito aqui o “Cartas Extraordinárias – a correspondência inesquecível de pessoas notáveis” organizado por #ShaunUsher (que também é responsável por outros livros com cartas temáticas) e publicado pela #CiadasLetras. São 125 cartas que incluem a receita enviada pela rainha #ElizabethII ao presidente norte-americano Eisenhower e o bilhete suicida de #VirginiaWoolf.
Outra dica sobre este tema está em:
Também por aqui muitos livros trazem as missivas de brasileiros com o registro não só de suas histórias pessoais, mas também de seu tempo. Da época da ditadura (é sempre bom lembrar para não esquecer), me vem à mente o “O canto na fogueira” com as cartas dos freis dominicanos #Fernando, #Ivo e #Betto quando em cárcere político; e o antológico “Cartas da Mãe”, de #Henfil.
Uma coletânea interessante da produção nacional está em “Cartas Brasileiras”, organizada por #SérgioRodrigues e publicado também pela Cia. das Letras. A obra reúne oitenta cartas recebidas ou enviadas por escritores, artistas e políticos – de #ElisRegina a #OlgaBenário, de #ChicoBuarque a #SantosDumont, de #RenatoRusso a #d.PedroI – entre outros. No momento, tenho sobre minha cabeceira “Minhas Queridas” com os manuscritos de #ClariceLispector às suas irmãs entre 1940 a 1957.
Das cartas que recebi guardo apenas uma parte.
E vez por outra encontro entre as minhas coisas o rascunho de alguma carta que enviei. Sim, algumas eram tão importantes que mereciam um ensaio prévio. Porque, final das contas, trata-se de diálogos.
E, como todo bom diálogo, cada fala e cada escuta está precedida por uma reflexão, ou um hiato como aquele do tempo espera entre o envio e a chegada da carta.
Nesses tempos de imediatismo, qualquer comunicação por email ou #WhatsApp precisa ser respondida imediatamente, sob o risco de melindre do emissor. Assim, é pouco provável que, no futuro, haja muito material para publicar com as mensagens trocadas por correio eletrônico.
Mais tempo de espera entre uma mensagem e outra talvez nos caísse bem. Evitaria muitas palavras “mal ditas”. Reações intempestivas e, que geralmente, não são de gentileza ou cuidado.
Pensando bem, minha nostalgia não é tanto pelas cartas.
Mas pelo escasseamento da boa e frutífera conversa. Quando discordar do ponto de vista de nosso interlocutor não era uma ofensa – mas um salutar hábito que estimulava a reflexão e inteligência de ambos.
Um diálogo, enfim.
Texto e fotos: Desirée Cipriano Rabelo
A autora é jornalista. Após aposentar-se na #UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), onde lecionava e pesquisava sobre comunicação e mobilização social, partiu em busca de novos aprendizados. Atualmente vive em Barcelona, Espanha.
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Espetacular sua crônica. Voltei no tempo relembrando todas as minhas correspondências. Tive uma longa e apaixonante relação com os Correios. Como você disse era uma forma que tinhamos de cultivar amores e amizades. Hipnotizante a forma como você nos convida para mergulhar no mundo das letras e das cartas, através da sua história, entrelaçada com as músicas e indicações de livros que retratam correspondências entre pessoas que foram referência na história da humanidade. Viajei por sua crônica. Parabéns
Obrigada amiga. bom saber dessa nossa experiência em comum. Este mundo de onde as pessoas se uniam pela palavra escrita…
Obrigada por suas palavras. Bom saber que também temos isso em comum… construir e manter relações pela palavra escrita é toda uma arte!
Texto que me permitiu o resgate de mim mesma… Passar uma carta a limpo e reler o conteúdo recebido era o tempo certo para o não arrependimento das palavras mal ditas e absorver as mensagens benditas!
Lembranças da minhas memórias afetivas.Nunca fui muito de escrever cartas,mas lembro de um rapaz chamado ,David,de Campo Grande.Parece, que você arranjou para nos conhecermos.
E nós correspondemos,por dois anos.
Nos conhecemos pessoalmente, ele veio a Belo Horizonte.
E acabou -se o encanto,parece que ele ia servir exército.
Oi Solange… é isso mesmo! Vc me lembrou que além de uma escrevinhadora de cartas, eu colocava os que não eram para escrever! Viu, ao menos vc tem uma lembrança devido às cartas…
Que texto lindo, Desirée: um registro histórico !👏👏👏
Ainda hoje escrevo carta, para um único amigo. 😂 É que pelo menos a cada dois meses o Chicão, um grande e querido amigo, dos tempos que eu trabalhava na Arquidiocese de BH, e que hoje vive em uma casa para idosos, em Betim, me escreve uma carta. No papel, sou capaz de sentir sua grande consideração, amizade e carinho por mim. As letras são desenhadas simetricamente, de forma clara e cuidadosa.
Faço questão de responder. Algumas vezes, a resposta demora quase um mês porque ir aos Correios demanda tempo, disposição e empenho. Mas, no ato de escrever à mão e com o máximo de capricho que me é possível, tento passar para ele o quanto nossa “correspondência” ( como ele diz) é importante e especial tb para mim.
🙏
E Viva as amizades e todas as formas de mantê-las firmes, fortes e belas! 🌻🌻🌻
Obrigada Vânia. nós que convivemos durante anos presencialmente, nunca tivemos que trocar cartas. Quando nos separamos fisicamente, as novas tecnologias já nos apresentavam outras soluções. Mais rápidas porém, menos românticas. Mas enfim… sempre nos correspondemos!
Bons tempos apesar de ter escrito poucas e boas cartas.
Lembro de algumas cartas escritas qdo vc estava em Londres, após foram por email, e no final acompanhamos a tecnologia.
Abraços
oi… sim que nos escrevemos quando estava em Londres. Depois disso, progressivamente as distâncias foram encurtadas por outras formas de contato: do orelhão em Salamanca, passamos ao e-mail, depois ao Skype, WhatsApp e hoje parece não haver mais distâncias. Melhor ainda agora, que estamos juntos e não precisamos nem do carteiro nem da Internet.
Bom para nós foram tempos importantes porque como escritoras que éramos era primordial escrever,cartas ,poesias e crônicas de nossos loucos amores quase sempre disputados não era ? Bom áureos tempos até hoje encontro amigos que me perguntam se eu ainda escrevo ,respondo que estás escritas ficaram guardadas. Algum canta de um armário velho ,mas confesso que tenho saudades de esperar as cartas trazidas pelo carteiro ao invés de um e-mail rápido e objetivo.como se perderam as pessoas não é mesmo lembro de passar horas olhando a cortina da sala quando dava hora do vizinho ao lado com o qual trocava uns beijinhos ,chegar do trabalho e passar com seu Chevette vermelho ,meu 💓 coração disparava e o sinal de alerta ligava ,pode ir lá dar seus beijinhos da tarde ,depois esperava meses você vir passar as férias aqui para colocar nossos amores em dia ,saudades amiga muitas saudades !
Querida amiga, pois queria comentar que eu ainda tenho alguns de seus textos, que copiei cuidadosamente no meu caderno de poesias e pensamentos… Lembra-se, toda menina tinha um, para registrar seus segredos e sonhos. Depois de crescidas, deixamos de lado esse costume. “Coisas mais importantes” nos impedem. Mas bem que você poderia voltar a escrever. Não apenas para matar as saudades, mas também para registrar seus sonhos de agora.
Meu irmão mais novo, quando pré-adolescente, começou a se corresponder por cartas (década de 1970) a partir de contatos com a revistinha do Maurício de Sousa. Lembro que ele recebia centenas de cartas dos países africanos de língua portuguesa. Não sei o que ele fez com aquelas valiosas cartas. Eu, lendo a Desirée, lembrei que eu também escrevia. Pouco, algumas cartas, cujas respostas ainda guardo em algum lugar. As cartas são documentos e isso está mais que comprovado. Fica no tempo e ao mesmo tempo o traspassa e o transpassa, chega a nós. Engraçado é quando chega de lá de trás, de nós mesmos para “outro” nós. Deveríamos voltar a escrever cartas. É uma forma de resistência a esses tempos em que as palavras são efêmeros vapores sem moradia. Não lembro se escrevi para Desirée. Mas seu texto é bem ilustrativo daqueles tempos.
Também não me lembro se nos correspondemos. Mas com certeza o texto provocou a retomada de diálogos e lembranças de nossos encontros. Enfim, há muitas maneiras de corresponder. Melhor ainda, quando somos correspondidos. Seja por carta ou WhatsApp.
Olá, Desiree. Gostei de sua crônica. Excelente. O hábito de escrever cartas ainda persiste em determinados lugares. Mas é coisa rara. Minha irmã escreveu inúmeras cartas para pessoas que não sabiam ler nem escrever, uma espécie de ghostwriter. Na minha cidade, em tempos de “cartas”, o carteiro fazia brincadeira com as moças, quando ia entregar as cartas. Ele conhecia a todos. Era divertido. De vez em quando dá vontade de escrever carta e faço-o para minha irmã e ela responde…rs. Só pelo prazer. Grande abraço.