Já me cansei dessa treta, mas considero fundamental depurar narrativas e demolir os mitos construídos para justificar o conflito ocorrido há 90 anos, em 1932.
De um lado, os “paulistas”, não todos, que batizaram o levante de Revolução Constitucionalista. Do outro lado, as tropas federais de Getúlio Vargas e o oficialato jovem ainda ralado da Revolução de 1930. Esses chamaram o confronto de Guerra Paulista.
Getúlio disse ao país que se tratava de uma rebelião separatista. Não era bem assim. É bem provável que essa ala secessionista fosse modesta. A voz de Monteiro Lobato provavelmente não representava a maioria.
Ao mesmo tempo, o tal constitucionalismo – demanda real – virou etiqueta virtuosa para o ressentimento e para uma ambição muito mais ampla, complexa e maliciosa.
A elite bandeirante sentia-se muito confortável com a estrutura de poder político e econômico estabelecida na República Velha. Esse privilégio foi sensivelmente reduzido a partir de 1930, com o intervencionismo do novo governo. Gente graúda perdeu cargo, influência e grana.
Os barões do café ficaram fulos da vida. Esse macro mercado era gerido por eles. De repente, Getúlio e seu gabinete é que estavam definindo as regras do jogo. O que era assunto dos paulistas virou uma questão dos brasileiros.
Evidentemente, a propaganda dos insurretos precisou identificar inimigos e detratá-los com estardalhaço. Os gaúchos eram tidos como empenhados na apropriação indébita (justamente por causa da revolução ocorrida dois anos antes). Os nordestinos, nomeados como “cabeças chatas”, eram retratados como pérfidos e inferiores pela mídia local.
Foi um negócio somente das elites? Não, foi também da classe média conservadora. E, com propaganda massiva da imprensa, mobilizou gente de todos os estratos sociais. Havia algo próximo de uma unanimidade? Parecia que sim, mas socialistas e anarquistas, por exemplo, nunca caíram nesse conto do vigário. E alguns até apoiaram as forças federais.
Coitadinhos de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo? Não foi bem assim. Há farto material jornalístico da época atestando que essa galera havia resolvido atacar a sede da Legião Revolucionária, entidade ligada aos rivais. Enquanto promoviam o vandalismo invasor, sofreram o contra-ataque e foram alvejados pelos adeptos de Getúlio. Ruim, triste, mas não foi coisa de meninos inocentes.
São Paulo perdeu. Mas constituiu uma segunda propaganda, esta de mitificação do levante e de seus propósitos. Nomes de ruas, mausoléu, obelisco, livros, palestras e desfiles anuais. A gente bandeirante precisava dourar a pílula da derrota. Difundiu-se a tese de triunfo tardio.
Getúlio constitucionalizou o país depois. Mas não como resultado direto do levante de 32. Por conveniência, nos anos seguintes, muitos constitucionalistas viraram varguistas. A elite paulista, no entanto, manteve seu programa de doutrinação das novas gerações. Na mensagem, forte tempero de bairrismo, disfarçado supremacismo e sutil recusa das reformas de cunho popular.
O 9 de julho da classe trabalhadora é outro
Nesse mesmo dia e mês, mas em 1917, as forças policiais dos quatrocentões assassinaram um de nossos companheiros queridos, o sapateiro espanhol José Martinez.
O jovem anarquista, associado à Federação Operária de São Paulo (FOSP) e à Confederação Operária Brasileira (COB), sofreu a brutal agressão no Brás, diante da fábrica Mariângela. Amigo dos operários, solidário, esforçado, tinha apenas 21 anos de idade quando lhe tomaram a vida.
Seu martírio, porém, despertou a consciência da classe trabalhadora paulista e, depois, de muitos outros brasileiros. A greve de 1917 paralisou o comércio e a indústria e foi fundamental para melhorar as condições de trabalho nos nascentes centros urbanos.
No dia 11 de Julho, 100 mil pessoas atravessaram silenciosamente a cidade para conduzir o corpo de Martinez. Cortejo imenso, da rua Caetano Pinto até o cemitério do Araçá. No retorno, milhares se concentraram na Praça da Sé e outros tantos diante da residência da jovem libertário que tombara.
Rebelados, os operários do Cotonifício Crespi, na Mooca, entraram em greve, logo seguidos por colegas de outras unidades industriais. A cidade acordara, com barricadas nas ruas e ativa resistência contra as forças opressoras. Foram dias de luta encarniçada. Muitos outros e muitas outras caíram, como a menina Edoarda Bindo.
Os barões da indústria, enfim, aceitaram elevar os parcos salários do proletariado e estudar as demais exigências. O movimento operário impunha-se como representação vigorosa e legítima das lutas populares. Naquele momento, o Brasil saltou um degrau acima na escala da construção da cidadania.
No domingo, 22 de julho, a greve já era vitoriosa. E os times oriundos do povo, o Corinthians, de origem anarquista, e o Ypiranga, de origem operária, foram disputar uma partida no campo da Ponte Grande, nas proximidades do Rio Tietê.
Os alvinegros do Bom Retiro venceram por 4 x 0, mas os jogadores e torcedores de ambos os times saíram às ruas abraçados, entoando os cânticos da luta popular. Ali, em festa do esporte bretão, surgia um novo país, mestiço, multicultural, destinado a persistir na prática da fraternidade e na luta por igualdade. Virávamos, enfim, protagonistas na história política do Brasil.
Viva o 9 de Julho de 1917!
Companheiro Martinez: PRESENTE!