Sob o signo da unidade e da esperança

Um olhar sobre Amarelo/Emicida

Victor Melo

 

“Elégbára réwà, a sé awo (O Senhor da Força é bonito, vamos cultua-lo)

Bará Olóònòn àwa fún àgò (Exu do corpo, senhor dos caminhos, dê licença)

Elégbára Elégbára Èsú Aláyé (Senhor da Força, Senhor do Poder, cumprimentamos o rei do mundo)”

 

“A pàdé olóònòn e mo juba Òjísè (Vamos encontrar o Senhor dos caminhos,  meus respeitos àquele que é o mensageiro)

Àwa sé awo, àwa sé awo, àwa sé awo (Vamos cultuar, vamos cultuar, vamos cultuar)

Mo júbà Òjisè (Meus respeitos àquele que é o mensageiro)”

 

“Escrever para mim é ter a benção de passear pelo tempo”

 

Amarelo é definitivo. Um contundente álbum e filme para consagrar uma das vozes mais originais, criativas e inteligentes da música brasileira, da arte brasileira, da cultura brasileira, do Brasil dos últimos tempos. Sua performance pública me remete a dois outros líderes musicais recentes: Chico Science e Marcelo Yuka. Há, contudo, uma diferença. Emicida é negro da periferia de São Paulo, de uma cidade de nervos muitos expostos, e a força de sua mensagem guarda uma contundência talvez somente possível naquela experiência citadina (e forçoso é lembrar da vanguarda paulistana de Itamar Assunção e do movimento punk de Clemente, entre tantos). Dura, mas poética. A dura poesia concreta de suas esquinas, como já disse o poeta Caetano.

 

Ao traçar uma “linha evolutiva” (termo horrível, mas não encontro outro melhor) da musicalidade (e da luta) negra no Brasil, o filme é bastante generoso e deferente com o samba e o Rio de Janeiro (relação não estabelecida de forma linear, mas muito enfatizada). Todavia, ao mesmo tempo desconfia e não deixa de considerar que a experiência paulistana oportuniza (a duras penas, diga-se) um caráter simultâneo e dúbio de ruptura e síntese que somente as grandes metrópoles oferecem.

 

Esse frenesi de ocorrências talvez ajude a também entender porque, para além de sua incrível leitura de mundo, Emicida não se considere como inaugural, se vendo como parte de um continuum que tem antigas e longas raízes. Um grão no universo. Mas não qualquer grão. Emicida “bate cabeça” para seus “mais antigos”, seus antepassados, mas, a despeito de seu respeito aos velhos mestres, deixa claro que também tem o seu papel de recriação. Se as novas gerações devem aprender com as antigas, devem elas assumir suas responsabilidades, não podem prescindir de interferir. Emicida se vê com a função de pôr mais um tijolo no muro. E que tijolo. Uma tijolada! Tijolada para destruir esse mundo, esse mundo que está sustentado em tantas desigualdades e desrespeitos. Construir um novo mundo.

 

A referência a Exu que abre e encerra o filme é assim um bálsamo a nos preparar e concluir a descarga de poesia que nos acomete em 1h30 de película. Exu é o orixá do movimento, da transformação, da revolução, da comunicação. Oxalá moldou o ser humano, mas foi Exu que lhe deu o impulso vital. A propósito, vale lembrar que na cosmogonia yorubá, o ori é tão importante quanto o orixá: o livre arbítrio, a possibilidade de escolha, o mais íntimo de cada indivíduo que deve mesmo receber a oferenda antes dos orixás.

 

E quando a oferenda for feita, primeiro se faz a Exu, pois ele é o elo de ligação entre os seres humanos e os deuses. Assim, mais do que uma referência fundamental ao orixá, ele mesmo, Emicida, assume uma função de Exu, promovendo elos de ligação entre as mais diferentes gerações e correntes com a proposta fundamental de recuperar os fluxos – entre os seres humanos que devem se respeitar e combater qualquer forma de preconceito (a mensagem antirracista é clara, explícita, urgente e necessária), entre os seres humanos e a natureza (o respeito ao entorno e aos diversos tempos que compõe a vida em sociedade), entre as diversas formas de religiosidade, que devem ser mobilizadas para cumprir sua função central – religare, a mobilização das infinitas forças do universo que se manifestam nos mais diferentes espaços – inclusive, mas não só, na ciência e na arte.

 

Emicida assume também uma função de Exu quando bagunça tudo, mistura, é inquieto. O orixá é conhecido por ser zombeteiro, tumultuador, aqui o tumulto entendido não em seu aspecto negativo, mas sim naquilo que desestabiliza, desconstrói dando possibilidade de uma nova criação.

 

Há que se lembrar ainda que Exu, dos orixás mais incompreendidos e vilipendiados pela cultura cristã, que o relacionou ao diabo numa dinâmica maniqueísta que não cabe no mundo yorubá, rege a rua, a festa, os espaços de exagero, mas também protege o povo que na cena pública vive – mendigos, malandros, putas, daí também ser relacionado ao sexo. Simultaneamente, Exu é o orixá dos desejos, do tesão, e da defesa daqueles que são excluídos, vítimas de um mundo de injustiça e desigualdade. Mas esses têm a proteção de Exu, e Exu é também a expressão da vítima que não se vitimiza, reage, luta, é também protagonista.

 

Para sustentar/apresentar suas hipóteses, o filme dá uma aula de história. Alguns poderão reclamar do caráter didático de algumas passagens. Para esses, valerá ponderar. Se fosse tão claro, não estaríamos passando pelo que estamos passando nesse país. Por vezes, é preciso explicar minuciosamente para que se entenda. Pode-se até desenhar, como diz a troça. Amarelo – o álbum e o filme – deveriam ser adotados como obrigatórios nas escolas nacionais.

 

Aliás, a não ser que você seja um avestruz, Amarelo não é opcional, é obrigatório, é peremptório, é necessário, é urgente se desejarmos deixar de ser um aglomerado de gente e passarmos a ser verdadeiramente um país e uma nação. E isso não será possível quando ainda estiver excluída das benesses do suposto projeto coletivo parte significativa do seu povo.

 

Assim sendo, a luta contra a exclusão – contra todos os tipos de exclusão – de raça, de gênero, de orientação sexual, de classe – é responsabilidade de todos. Porque essa luta só cabe mesmo aos seres humanos. Lembremos outro dito: “Èsù gbe eni se ebo lore o” (Exu sustenta quem faz o sacrifício corretamente). Trata-se de uma responsabilidade coletiva. Não é uma escolha – é uma obrigação que cada um tem de pensar, fazer, ousar para ter um outro mundo. Definitivamente, tenhamos claro, como diz o poeta:

 

“Tudo, tudo, tudo, tudo que nós tem é nós

Tudo, tudo, absolutamente tudo que nós tem é

Tudo que nós tem é isso, uns ao outro

Tudo o que nós tem é uns ao outro, tudo

“Tudo que nós tem é nós.”

 

Há esperança. E a cor da esperança não é necessariamente verde. É amarela. A esperança é, na verdade, colorida. Como o arco-íris.

 

PS: Todas essas palavras são meras racionalizações de alguém que de debulhou em lágrimas ao ver o filme. Tentativa de organizar o caos interno que o filme criou. E aí é quando a arte é mais arte (ou talvez quando ela é efetivamente arte), quando num transe te faz girar, como nos transes dos rituais afro-brasileiros, quando se incorpora uma outra coisa que partilha contigo sua outrora consciência que não é mais a mesma.

 

Victor Melo é flamenguista, umbandista e marxista. Também professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

 

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