Construir Resistência
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Sexo, drogas, rock n roll e…uma filha que reencontrei – por Luiz Galvão

Ontem vi que 30 de agosto é o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimento Forçado.

De certa forma, me fez lembrar da minha filha que logo após nascer desapareceu, forçada, mas  porque eu também desapareci.

Eu estava com 21 anos quando engravidei uma garota de 18. Era um  hippie e de carteirinha meia gasta já. Criticava e odiava as instituições, o “sistema” e, claro o casamento juramentado pela Lei e por Deus.

Na minha cabeça, além de muito rock, drogas e sexo, acreditava fielmente naquela “filosofia do amor livre”, e assim podíamos ter vários relacionamentos sem compromisso. Quer dizer, todo mundo podia namorar com todo mundo, sem sentir ciúmes ou posse. Vivíamos como nômades, jogados nas calçadas do Teatro Municipal (SP), procurando cogumelos em Guararema (a turma ia de trem) ou nos shows e agitos no Colégio Equipe, um belo reduto para quem idolatrava a contra-cultura. A curtição e baladas eram  regadas sempre com “bombeirinho” (pinga com groselha), muitos bambas prá cachola (baseados) ao som dos  Stones e Led Zeppelin na vitrola.  Mochilas nas costas e como na canção do Belchior, “cabelo ao vento gente jovem reunida”.

De repente, uma garota me contou que estava grávida e que eu iria ser pai. Não tive um enfarte por pouco. Pirei na hora. Não acreditei, praguejei, xinguei ela de tudo quanto foi nome feio mesmo. Ela me jurou que era virgem antes de transar comigo. Eu disse que ela não era virgem e que eu não poderia ser o primeiro porque não tinha rompido seu hímen (essa palavrinha descobri bem depois) e que ela nem tinha sangrado  (que coisa horrível né, credo, mas apesar de ser hippie, ainda tinha uma mente fechada sobre muita coisa e o machismo estava nas minhas entranhas da mente).
Também jurei que se fosse meu não iria pôr meu sobrenome e nem casar, o que ela queria e muito. Nasci no Brás e me criei no Belenzinho, zona Leste de Sampa. No meio dos carcamanos. Para mim, a rua era toda a informação que eu tinha sobre virgindade e gravidez. Confesso que só com o tempo abri minha mente para muitas coisas. Não se trata de uma justificativa para o que aconteceu.
Nos primeiros meses, ela fazia questão de ir no meu bairro para me provocar e mostrar sua barriguinha. Ficava puto quando ela inventou de expor, manguear, vender artesanatos no meio do Largo São José do Belém, bem ao lado de minha casa.
Reforçava meu desprezo e meu juramento. O problema com minha consciência começou mesmo ao ver campanhas sobre gravidez e aleitamento materno bem no lugar onde trabalhava, na Faculdade de Saúde Pública da USP. Era auxiliar de escritório na Reitoria.
Nunca tinha visto tantas mulheres grávidas e bebês ao mesmo tempo na minha vida. Elas com meses diferentes de gravidez desfilavam pelos corredores da Faculdade. E eu, às vezes, entrava em pânico. Em choque. Parecia uma provocação do destino ou sei lá de quem.
Nove meses se passaram
Enfim, um dia tocaram a campainha da minha casa e dei de cara com ela e uma menina no colo. Outro enfarte quase. Fiquei desesperado. Mudo. Achei a menina um pouco parecida com minha mãe e mais nada. Na verdade, achei a nenê mais parecida com um cara loiro que morava na mesma rua. Meu Deus. Nem imaginem o que me passou pela cabeça.
Mantive meu juramento. Não casaria e nem daria meu sobrenome. Falei apenas que ia ajudar com o berço e carrinho. O bebê era lindo, mas não meu. E ponto final. Tinha até medo de me envolver e acabar casando, o que a mãe queria o tempo todo. Ela só sabia meus três primeiros nomes.
Justo eu, um porra loka, livre pra cassete, querendo me mandar para os “exteriores”, estudar, viajar etc.
Quando a menina estava com cinco meses, a mãe resolveu casar com um vizinho dela e sumiu do mapa. E eu e minha consciência começaram a desabar emocionalmente. Mas cabeçudo, ainda me perguntava: Será que é minha filha mesmo?
Passei a procura-las por todo canto. A avó da menina que morava na zona Norte tinha se mudado e ninguém mais sabia pra onde elas tinham ido. Continuei vendo mulheres grávidas e bebês no trabalho, cada vez mais encucado. O tempo passou. Fiz faculdade, morei em Londres, tive outra filha (que me fazia fatalmente lembrar do passado).
No ano 2.000, acabei casando pra valer, com a mãe do meu filho, juramentado no cartório e na igreja. Sempre pensei que um dia a mãe da menina iria me procurar, apesar dela ter casado com outro, que provavelmente a registrou. Toda minha família sabia da história. Dei alguns showzinhos quando tomava umas e outras. ” Aiiii…abandonei uma filha….aii. “
Finados. O dia da  vida.
O passado voltou com força. Desta vez, para eu me reconciliar com ele. Já tinha perdido as esperanças e no dia de Finados, dois de novembro de 2009, abri meus emails e vi um que mudou minha vida. Dei um pulo da cadeira, quase enfartei de novo. Lia e chorava.
Minha filha me encontrou na internet e esse foi o email:
 Oi Luiz, tudo bem?
Está difícil encontrar as palavras certas.
É possível que você seja alguém que eu tenho procurado informações há alguns anos. Se for mesmo, talvez meu nome já tenha feito você saber quem sou eu.
Tenho 27 anos e quando criança soube que nasci durante um relacionamento que minha mãe – o nome dela ………- teve aos 19 anos, poucos anos antes de se casar.
Bom, acho que agora seu coração pode estar um pouquinho mais acelerado, né? (rs)
Desculpe, estou realmente com dificuldades para escrever este e-mail, pois não quero te passar nenhuma impressão errada do porquê estou te procurando. Não gostaria que se sentisse cobrado por nada.
É uma mistura de felicidade com a incerteza de como você interpretará tudo isso.
A verdade é que sempre tive muita curiosidade em um dia poder te conhecer (se for você mesmo, rsrs), saber se me pareço com você (fisicamente, acho que nos parecemos…dá uma olhada na fotinho), se temos coisas em comum… A única coisa que minha mãe sempre disse é que você é uma boa pessoa e que sim, nos parecemos.
Fiquei algum tempo sem tentar te encontrar, pois nunca conseguia nenhuma informação.
Esta semana algo me disse para tentar novamente e então te encontrei na internet.
Li que você acredita em Deus. Também acredito, e sempre acreditei que Ele me ajudaria a encontrar você no momento certo.
Tenha certeza de que minha única intenção é te conhecer e ter a sua amizade. Seria uma grande satisfação.
Um abraço,
……
Passei um dia chorando e ouvindo músicas. Clássica, várias, sacra, rock, MPB. Fiquei muito emocionado. Demorei pra responder:
aqui a minha resposta:
Érika.
Muito legal seu e-mail. Você conseguiu sim encontrar as palavras. Aliás muito bem escrito, parabéns.
Agora foi minha vez de ficar aqui tentando achar essas letrinhas danadas..rs. (Abri ontem de manhã). Fiquei muito emocionado com o que li. É possível que eu seja mesmo a pessoa que procura. Lembro de sua mãe e do começo da década de 80. Tudo era muito incrível, muita alegria e sonhos maravilhosos.
Compreendo o seu cuidado em não querer passar impressões erradas ou que eu me sentisse cobrado. Não aconteceu nada disso, fique tranquila.
Passaram-se apenas vinte e sete aninhos. Ufa!!! É um bom tempo. Mas na essência continuo o mesmo. Sonhador, idealista, alegre e sempre tentando ser coerente com meus princípios, com a minha natureza…com o que acreditava e acredito: No amor acima de tudo; pela vida, pelo mundo e o ser humano. Na generosidade e honestidade. Mesmo passando por todo tipo de adversidades, o que é inerente à vida, né. Crescer e amadurecer espiritualmente é um exercício de habilidade diária e eterna. E isso que me empolga, me faz sentir cada vez mais vivo. Ou o mesmo jovenzito sonhador..rs.
Vixi..rs..já me empolguei rs. Vou tentar ser objetivo rs.
Bom, saiba que, de certa forma, sempre imaginei que um dia isso pudesse acontecer. Desde aquela época as incertezas ou dúvidas ficaram à espera de uma resposta do destino. E, como você disse, (e eu também acredito) Deus, um Poder Superior ou o Universo, conspiram para que as coisas aconteçam no momento certo. E o Tempo, como dizia o véio Caetano na música ..é O Senhor dos Mistérios. (já gostei muito dele, mas ele tá meio chatinho agora, acho rs).
Não se muda o passado. Se aceita, quando ele é real. E com isso é possível melhorar o presente e o futuro. Para um fato pode haver várias versões. Mas contra fato não há argumentos.
Me sinto feliz por você ter decidido me escrever. Para mim também é uma grande satisfação saber de você ou te conhecer.
Adorei suas fotos. E você é uma moça muito bonita.
Sinta-se à vontade para me escrever. Vamos conversar.
Um grande abraço.
Luiz Galvão
Na época estava seis anos limpo e longe do álcool e drogas. Fazendo minha pós graduação. Quem já leu alguns dos meus relatos sobre minha dependência química e superação tem uma ideia da felicidade que tive por minha filha ter me achado naquele momento lindo.
Ela me contou que só descobriu que o padrasto não era o pai dela quando estava com dez anos. Teve alguns problemas emocionais. Fez terapias e resolveu me procurar. Dos dez aos 27 anos, tentou inúmeras vezes sem sucesso. Procurou nos lugares onde morei antes dos meus  22 anos e até na escola que fiz o colegial. Nem mesmo quando chegou a internet ela conseguia. Faltava meu sobrenome. Cada Galvão com certa probabilidade de ser eu ela mandava a foto para a mãe. Nada de nada, até que me viu no My Space e Orkut. A mãe falou é ele, no ato.
Finalmente, em 2010 registrei minha filha. Ela veio morar comigo. Já era uma filha pronta. Formada em Letras e professora. Eu reencontrei a mãe dela 30 anos depois. Viramos uma família por um tempo. Me apaixonei pela mãe, muito gata, dessa vez de verdade. Nunca fizemos exame de DNA, nem precisava, não só pela semelhança física comigo, mas porque uma mãe também não mentiria todo esse tempo.
Atualmente, ela mora fora  e me deu um neto. Eu e a garota que engravidou de mim em 1981 nos separamos novamente.
A tempo.
Foram três relacionamentos e um filho em cada um. Praguejei tanto contra casamento na juventude, mas nunca deixei de acreditar no amor.
“Nem tempo, nem felicidade, nem divertimento, nem crianças, nem casa, nem banheiro, nem um par de pijamas limpos, nem o jornal da manhã, nem acordarem juntos, nem acordar e saber que alguém está ao seu lado e que você não está sozinho. Não. Nada disso. Mas por quê quando isso é tudo que você quer na vida, justo quando você o encontra, por que  não, pelo menos uma noite. Numa cama com lençois?”
Ernest Hemingway, trecho do livro ” Por Quem os Sinos Dobram”.
Érika, a esquerda, com os irmãos no Natal de 2009, na primeira festa após 27 anos
Luiz Galvão Soares é jornalista profissional, formado pela Faculdade Cásper Líbero, com graduação em Convergência de Mídias. Foi repórter, editor, chefe de reportagem nas principais emissoras de TV.

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