Por Luiz Hespanha
Quando vi Maricleide atrás daqueles óculos redondos, diadema sobre os cabelos (tiara para quem é do sudeste); dentro daquele vestido florido esquisito, preconceituosamente pensei: o que é essa candidata a Madre Superiora está fazendo numa Faculdade de Comunicação?
Vinda do interior paulista, Maricleide cultivava aquele “erre” carregado. Mas seu ar conservador parava aí. Exercitava seu arsenal de palavrões com uma dignidade invejável. Zombeteira, me dava um cutucão quando resolvia ridicularizar alguém. Fazia isso com a naturalidade de uma caipira de almanaque, sempre decibéis abaixo daquilo que pudesse constranger quem quer que fosse. A capacidade de fazer troça sem preconceito nos uniu. Viramos amigos e confidentes circunstanciais dos nossos momentos ridículos e de outrem.
A gente se divertia um bocado naquele ambiente estudantil pós-anistia que reunia compenetrados intelectualóides candidatos a escritores ou a colunistas de coleira; embelezados candidatos a luzes, câmeras, passagens e bancadas globais; porra-loucas candidatos a porra nenhuma; e os revolucionários de plantão na eterna pescaria de candidatos a revolucionários. Todos tinham seu charme e suas porções ridículas.
Lembro da tentativa de cooptação feita por um colega – hoje um sisudo professor universitário à direita – à época, dirigente de uma organização radical de esquerda. Maricleide ficava fascinada com suas intervenções nas assembleias e suas teorizações na Casa da Esfiha, local onde derrotávamos democracias burguesas e imperialismos. Ali aplaudíamos o “Solidarnosc” e vislumbrávamos paraísos verdadeiramente socialistas. Um dia, numa dessas sessões de cooptação, ela me confessou: “ainda vou comer esse cara”.
Nunca soube direito do que Maricleide vivia, o que fazia. Sei que viveu em apartamentos com senhoras que alugavam quartos ou dividia outros com amigas. Lembro de uma delas. Toda vez que Maricleide me convidava para almoçar lá, a moça me dava um oi desajeitado e se trancava no quarto. Na primeira vez achei normal, lá pela terceira ou quarta achei esquisito e perguntei. “Ela não gosta de comer na frente de ninguém, nem de ver ninguém comendo. Eu também não considero a mastigação uma imagem das mais agradáveis, mas não sou tão elevada espiritualmente quanto ela nesse aspecto”, me disse antes de deixar seu riso contido “humorificar” o ambiente.
Certa feita, no nosso bunker anti-imperialista, notei que Maricleide e nosso orientador internacionalista estavam mais quietos que de costume. Debitei a situação à irritabilidade que ataca qualquer mortal e aos pequenos infortúnios amorosos do cotidiano. Nesse dia nosso Trotsky de plantão convidou seus discípulos para participarem como observadores da Conferência da Organização que seria realizada numa faculdade paulistana.
Teríamos a honra de conhecer o líder máximo, o verdadeiro farol do socialismo que haveria de ser construído nesse país tropical, bonito por natureza e que seria abençoado pelos deuses e deusas do ateísmo. O guia genial das massas estudantis, operárias e sabe-se lá quais outras, foi anunciado. Findo os aplausos, nos perfilamos para cantar “A Internacional”. Fingimos que cantávamos. Depois do “De pé, ó vítimas da fome/De pé, famélicos da Terra”, Maricleide, eu e um monte de gente, só entrávamos no “Bem unidos façamos, nesta luta final, uma terra sem amos, A Internacional…” Como em qualquer refrão fácil, extremamente fácil, pra você, eu, Maricleide e todo mundo, a canção cresce e você sai cantando. No caso da “Internacional”, com toda beleza e o peso histórico que a música tem.
O discurso do farol luminoso foi lustrado ainda mais por uma apresentação hagiográfica sobre sua capacidade teórica e atuação como combatente na Revolução dos Cravos que derrubou o Salazarismo, o fascismo português. Maricleide olhou pra mim indignada: “primeiro vem esse líder de merda que a gente tem aqui, cheio de discurso revolucionário, que brochou comigo mais de uma vez e eu mandei caçar sapo. Agora vem esse aí, idolatrado como combatente de uma revolução que não teve um tiro sequer. Vamo’imbora?” Fomos. Entediados, constatamos que nossa aventura revolucionária dentro da Quarta Internacional acabou quando pisamos no primeiro degrau do busão que nos levou ao centro da cidade.
Volta e meia almoçávamos nos locais que ela morou ou em restaurantes com ótimos “pê éfes” na região da Augusta. Lembro dela ter me apresentado a uma banda, daquelas que pululavam nos anos 1980 fazendo roquinhos, baladinhas e outras inhas. Precisavam de um letrista e ela me apresentou como alguém capacitado para a função. A parceria não frutificou. Jamais conseguiria atingir o nível deles. Problemas de régua poética e puerilidade.
De repente os telefonemas e almoços cessaram. Maricleide sumiu. Alguém me disse que ela estava morando em Londres. Teve até quem me garantiu que ela tinha virado budista e estava na Índia. Tentei achar Maricleide porr’aí, o que incluiu buscas nas redes. Desconfio que ela resolveu se asilar na cidade onde nasceu; levar uma vida pacata de professora aposentada ou dona de um pequeno negócio. Talvez entre filhos e netos. Talvez solteira, cercada de cães ou gatos. Espero que esteja viva; que tenha mantido seu humor ferino, sua capacidade de fazer troça sem preconceito e sua risada contida, mas “humorificadora” de ambientes.
Luiz Hespanha é jornalista, escritor e compositor de música popular. Este texto é parte do projeto #impressõesquaseportáteis #históriasqueosolhosnãoinventam. A arte urbana é do Danilo Roots e estava exposta na altura do Nº 5000 da av. Brigadeiro Luiz Antônio/SP. As foices e martelos são cliques deste cronista barato também metido a fotógrafo.
Resposta de 0
Hespanha cada vez melhor
Hespanha cada vez melhor
Hespanha cada vez melhor.