Por Alfredo Attié
- Mística do Sete de Setembro
A fixação do “Sete de Setembro,” como marco inicial da independência da América Portuguesa, bem como do “Grito do Ipiranga,” como seu momento inaugural, correspondem, respectivamente, a construção historiográfica e a invenção de tradição, cujo sentido e propósito são genuinamente políticos. Os eventos de 1822 são, claro, importantes, bem assim a convocação da constituinte, em junho; a decisão do Príncipe herdeiro de romper os laços com Portugal, em setembro; sua Aclamação, reconhecimento ou imposição como Imperador do Brasil, em outubro; e sua coroação, em dezembro. Entretanto, não esgotam a história desse esboço de independência política, cuja conformação, e mesmo incompletude, ajudam a explicar os impasses de nosso tempo, no qual, uma vez mais, às vésperas da mística comemoração patriótica, duas forças – forjadas nos movimentos de rua de 2013, 2015 e 2016, e na reação, disciplina e repressão desses movimentos – indicam um novo confronto de ritmos e narrativas da interpretação da realidade política brasileira.
A imprensa fala em manifestação de “bolsonaristas” e “anti bolsonaristas,” assim como refere, com naturalidade, a oposição entre “bolsonarismo” e “lulismo,” em sua advocacia de uma fictícia “terceira via.” Entretanto, é preciso insistir que todos esses termos são inconsúteis, superfície discursiva tendenciosa de uma trama que, diferentemente dessa atitude de pregação doutrinária, a mesma imprensa teria o dever de entender e explicar, sobretudo tendo em conta a circulação quase que livre de fakenews, falsas imagens e falsas narrativas, em redes sociais e em canais pretensamente noticiosos, que gozam de financiamento de empresários e, muito provavelmente, de dotação orçamentária governamental.
A questão relevante, objeto do temor de muitos, é a pertinência da imaginação de um “golpe de Estado,” diante das ameaças de um Presidente da República incapaz de compreender a natureza, as funções e a responsabilidade do cargo que ocupa, e destituído de empatia pelo povo brasileiro, de afeto pela Constituição que jurou cumprir, e de entendimento da diferença entre o espaço público em que se desenrola sua atividade antipolítica, e o privado de seus atos e discursos anticonstitucionais.
Há indicações de apoio a esse projeto ditatorial e de anuência a esse discurso fascista ou totalitário, que vêm das mesmas forças que sustentam sua permanência surpreendente no poder, apesar do cometimento de crimes de responsabilidade, comuns e contra a humanidade, e de representações para dar início a processos de impeachment, penais comuns, penais internacionais, de inquéritos para apurar seu envolvimento direto e indireto em ações antidemocráticas, de desvirtuamento político-eleitoral, bem como seus desmandos na desastrosa resposta à pandemia, finalmente, de ação para declarar sua incapacidade e afastá-lo do cargo de Presidente.
Essas forças são basicamente a militar, que abrange parcela das polícias militares e das Forças Armadas, bem como de milícias; a religiosa ou evangelical, que engloba correntes religiosas conservadoras e reacionárias; a do ativismo judicial, que reúne juristas de profissões de Estado, que participaram do lavajatismo ou que se afastam dele, mas permanecem vinculados a concepções de mundo exclusivistas, conservadoras e reacionárias, mas que, sobretudo, entendem que o Judiciário e as carreiras que em seu torno gravitam devem exercer uma função moderadora e iluminista, de monopólio na posse e na dicção do direitos e das leis, mesmo superior à Constituição; a do redessocialismo, marcado por uma visão deturpada do mundo e das relações humanas e ambientais, movida por um ressentimento e por um desejo de constituição de um espaço de exclusão, em que circulam privilégios e exploração do trabalho; o próprio bolsonarismo, facção antipolítica de extrema-direita, vinculada à antiga “doutrina da segurança nacional,” que se estabelece como líder de todas essas correntes, tendo em vista sua flexibilidade de utilização de instrumentos e de realização de alianças, mas, sobretudo, por sua disponibilidade para a realização de um projeto de continuidade colonial, no restabelecimento brasileiro de uma feitoria, submissa a interesses corporativos nacionais e transnacionais, bem como à dominação, no âmbito das relações estrangeiras, a movimentos de interesse de elites locais e interligadas mundialmente, para a constituição de uma revivescência totalitária; finalmente, o movimento dos interesses corporativos sintetizado no termo do “neoliberalismo,” que encima e dirige os interesses defendidos, conscientemente ou não, por esse conjunto de forças, cuja ideologia pode ser resumida nos valores da mentira, do privilégio, da ganância ou lucro, que encaminham à exploração e à opressão humanas, e da violência. Essas forças e valores são conjugados sob o guarda-chuva da economia, cuja “ciência” é posta como única forma de governança ou gestão a serviço do Estado, que abdica da soberania e da cidadania constitucional, para se tornar representante do mercado, isto é, agente da antipolítica, ao supostamente abrir mão de suas tarefas constitucionais e, em verdade, armar-se como garantidor de privilégios, explorações e exclusões.
Muito bem, é no contexto da performance desses agentes que o fantasma do golpe volta a assustar a sociedade brasileira, muito embora se possa dizer que, a par da resistência popular, por meio de movimentos e valores mais ricos, diversos e mesmo inéditos, falta ao desenho ditatorial o apoio das chamadas classes médias, de setores importantes religiosos, de parcela do empresariado, de setores oficiais do militarismo, bem como o suporte internacional, tendo em vista, sobretudo, o arcabouço normativo de direito internacional, que abrange a Ordem Internacional e Regional dos Direitos Humanos e a Ordem dos Deveres e Responsabilidades Ambientais, bem como o relevante fato de os Estados Unidos terem elegido Joe Biden – responsável por trazer ao Brasil e entregar em mãos a Dilma Rousseff, quando Vice-Presidente de Barack Obama, documentos relativos à participação norte-americana na ditadura civil-militar de 1964/1985-6, para instruir a investigação levada a cabo pela Comissão Nacional da Verdade – e derrotado o projeto golpista de Donald Trump.
- Golpe?
O emprego do termo “golpe”, para dar ideia de repentina tomada de poder, em uma dada circunstância política, é evidentemente equivocado. A história não conhece esses fatos bruscos e brutos, mas processos, às vezes breves, outras, longos, que indicam uma ruptura paulatina com o ritmo acomodado das relações humanas. Como na poesia e na música, os versos, os compassos e as versões da vida vão seguindo uma determinada cadência, sequência de sílabas e tempos tônicos e átonos, permeados de cesuras ou pausas, mas, sem perceber, vão perdendo as antigas marcações e adquirindo novas, que transformam a visão e a audição habitual das frases e dos estilos. De repente, as pessoas se dão conta de que houve uma mudança.
Deixam de lado, porém, a evidência do processo e buscam uma causa, um evento que explique tudo o que ocorreu. O que veio se construindo a pouco e pouco, é visto como produto de uma artimanha repentina, havido ali, no instante em que uma placa e uma marca são dispostas para dar ciência a todo mundo que vivemos uma nova era. Um nome é escolhido para chamar o novo território. Quando não há mais nomes à disposição da imaginação, aparece o prefixo “pós,” que figura as consequências da causa única e atemporal, que a surpresa da percepção confusa ou preguiçosa inaugurara.
Ainda, isso que é chamado erroneamente pura e simplesmente de golpe, por outro lado, muito embora seja anunciado e interpretado como produto de uma causa natural ou externa às relações e aos atos humanos, é a síntese de um feixe de forças, que resultam do embate de ações e reações dos que representam a cena política, isto é, homens, mulheres e grupos que atuam segundo seus desejos em relação ao espaço de vida comum, de acordo com as capacidades que logram obter, tomando por base precisamente essa performance prática ou discursiva que se entrecruza no palco que chamamos de política.
A Independência brasileira, que comemoramos todo dia sete de setembro, como expressão dessa visão fictícia do golpe e do grito da separação decidida pelo futuro Imperador, em realidade correspondeu a um longo processo, vincado em várias etapas e disputado por diversas concepções do mundo e da política, e alguns desenhos do que pretendiam as elites em concorrência pudesse ser o destino da nova Nação. Portanto, nem apenas um golpe, muito menos único grito apaixonado, sendo certo que a multiplicidade de atores e o curso do processo viriam a indicar tensões, posições e soluções contenciosas, além de vetores contraditórios.
Esse processo, iniciado em 1763 – com a mudança da Capital do Vice-Reino do Brasil de Salvador para o Rio de Janeiro, que assistiu, sobretudo após 1808, a formação de uma elite política crescentemente mais centralizadora, em decorrência de consolidação e do projeto pombalino (1750-1777), e de sua disciplina escolar nos bancos da Universidade conimbricense -, vai se aperfeiçoar no período 1817-1825 – portanto entre a Revolução Pernambucana, o retorno do Rei a Portugal, a convocação e a dissolução da assembleia constituinte, a outorga da Constituição de 1824 e o Tratado do Rio. 1831 assiste a uma dobra, nesse curso, em processo que segue até 1840, momento em que a Monarquia se reorganiza e as elites brasileiras iniciam a prática, a reflexão e o debate sobre a natureza, a estrutura e a função do Poder Moderador, contribuição especificamente brasileira à apropriação conservadora do discurso revolucionário e reversão de suas propostas e desenhos, e à construção internacional dos regimes antipolíticos de exclusão popular, ou antidemocráticos de exercício do poder. De forma geral, esse discurso e essa prática conservadores vão consolidar instituições de exclusão e de controle antipopular, especificamente a “separação e poderes” e o “sistema de checks and balances,” assim como os tribunais constitucionais, – artefatos da salvaguarda constitucional -, que vão se consolidar por meio do uso das Constituições como instrumento de controle ou domínio político das elites, e do constitucionalismo – e de seu correspondente pretensamente “científico”, o direito constitucional –, como discurso e ideologia consagradoras de valores antipolíticos. No Brasil, a par da muito tênue adesão a tais instrumentos, é o Poder Moderador que vai dominar a cena política e o pensamento constitucional, logrando uma longa vida de eficácia excludente do verdadeiro sentido da política, da justiça e do direito, em nosso País.
Minha hipótese é a de que, ainda hoje, colhemos os frutos dessa elaborada história, em que as imagens de “golpe” e de “moderação,” e suas consequentes práticas, entre autoritárias de centralização, e conservadoras de distensão de poder entre os órgãos e funções da elite, remanescem, tornando-se o pesadelo dos que buscam construir a democracia no Brasil. É bem por essa circunstância histórica e política que o pensamento e o peso de golpes sucessivos apontam sempre para sua duplicação: a ideia de “golpes dentro de golpes,” disputas golpistas até a consolidação de uma dessas vertentes, seja a mais conservadora e concentradora ou autoritária, seja a mais liberal e moderadamente distributiva. O povo, evidentemente, está sempre fora dessa conta. E toda vez que uma liderança carismática se aproxima do poder de modo mais independente – sem realizar um pacto de adesão a teses menos populares de exercício da atividade administrativa –, fortalece-se a convicção de que uma reversão política deve ser buscada, por meio de uma série de atos de ruptura institucional – ou de uso pragmático das instituições como pretexto para essa ruptura. E, para tanto, servem, como sempre serviram – desde mesmo a adoção da doutrina do Poder Moderador -, tanto o clima ou contexto de circulação de ideais no âmbito internacional, como uma ou outra teoria, traduzida do modo mais cômodo ao intento de reassumir o controle do exercício do poder. Isso é que justifica a superficialidade e a labilidade de nossas doutrinas culturais, a par do sempre atuante ecletismo. Nossas elites violam direitos sob um sem número de justificativas, ou aderem a eles de modo descompromissado. Para isso, encontram amparo em suas leituras enviesadas de textos estrangeiros, sempre trazidos à guisa de dar autoridade a um discurso escorregadio que, ao assumir a feição de discurso oficial, busca ancorar-se na mais fina flor da pura enganação, da mentira simples. Basta ler os atos institucionais que se sucederam no regime militar mais recente, em que a palavra “democracia” é pluricitada, sempre ao lado de valores que se afastam radicalmente dela e de seu significado.
- Golpe dentro do golpe?
Há, pois, dois lances que se empreendem nessa véspera da comemoração da “liberdade”, que está ainda longe de raiar no horizonte do Brasil.
Um deles, mais evidente, é o da ameaça do bolsonarismo de consolidar com violência sua intenção colonialista e ditatorial. O ocupante ilegítimo do cargo de Presidente já adotou um novo “grito”, “vitória ou morte,” porque já sabe que o caminho da reeleição está muito distante de ser alcançado. Popularidade extremamente baixa, abandono da nau da insensatez e da insegurança por parcela considerável da elite econômica, falta de capacidade de superar a crise de inflação, o desemprego e os fundamentos mínimos de uma política que se possa chamar de econômica. As classes médias, nas quais se encontram boa parte dos empresários e dos trabalhadores, já sentem que caíram num engodo – auto infligido, na maior parte dos casos, aliás. Ainda, uma parcela das profissões jurídicas de Estado levantou-se contra o lavajatismo – sem abandonar suas convicções de exclusivismo e protagonismo iluminista, assim como sua conformação conservadora -, tido como o responsável direto pela consecução desse engodo. Muitos dos detentores de patentes mais altas das Forças Armadas não se querem ver confundidos com a escandalosa figura do ex-capitão insubordinado. A intelectualidade liberal se vê incomodada pelo comportamento antiético e antiestético do animador de pequenos circos instalados na saída do Palácio da Alvorada.
Para onde caminham, contudo, esses descontentes da trama bolsonarista? Para a legalidade incondicional ou constitucionalidade radical?
De maneira nenhuma. Planejam um atalho, chamado de terceira via. Todos sabem que a força da candidatura do ex-Presidente Lula mostra-se, cada vez mais – e mais uma vez -, inegável, assim como incontornável se apresenta a elaboração e a execução de um projeto político de centro-esquerda. Sabem que seu retorno ao Palácio do Planalto já se desenhava em 2018, quando as pesquisas de opinião apontavam número de preferência superior ao de todos os demais candidatos de então somados. Sabem que sua candidatura foi abortada por ato de violência, quando foi condenado ilegalmente, por um Juízo incompetente e suspeito. Enfim, como nos casos de Getúlio Vargas, nas décadas de 1940/50, e João Goulart, na de 1960, que sua chegada ao Poder Executivo se faz apenas questão de tempo. Portanto, inconformadas com esse fato, mais uma vez, as elites brasileiras buscam uma nova parceria, para consolidar um processo de ruptura que se iniciou, provavelmente, em 2003, pela via judicial, em aliança entre o conservadorismo político, o militarismo conservador, o Ministério Público Federal e o Poder Judiciário, tomando força com os ousados e ilegais lances da lava-jato, com o impeachment de 2016 e com a condenação, consideração de inelegibilidade e prisão de Lula, entre 2017 e 2018.
Quero dizer que o “impeachment” não foi um golpe, mas apenas um lance de um processo que ainda se deseja consolidar. Que as ideias de “lawfare” e de “estado de exceção” apenas ornam uma evidência que é histórica e de longa duração no Brasil. Que uma concepção mais complexa e menos violenta de “golpe” esteja disputando o espaço do conflito de poder, dentro daquela outra mais franca e bruta. É aquela que aponta uma imaginada “terceira via,” seja encarnada em algum candidato que possa reorganizar o desenho elitista, seja numa mudança estrutural do regime, para reatar o controle político nas mãos de uma elite mais confiável e segura, assim por meio de vários projetos de reforma legal e constitucional, entre os quais o do chamado “semipresidencialismo”.
Enfrentando, porém, esse dilema está o povo brasileiro, conformado por anos de ainda frágil mas eficaz empoderamento, e que parece desejar deixar a postura bestializada do espectador de rupturas, e de permitir que astuto ardil forje novos grilhões.
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Alfredo Attié é jurista, filósofo e escritor, doutor em filosofia da Universidade de São Paulo, onde estudou direito e história. É Presidente da Academia Paulista de Direito e Titular da Cadeira San Tiago Dantas, na qual sucede a Goffredo da Silva Telles Jr. Autor dos livros Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito (São Paulo: Tirant Brasil), e Towards International Law of Democracy (Valencia: Tirant Lo Blanch), que serão lançados em novembro deste ano. Escreveu, ainda, A Reconstrução do Direito: Existência. Liberdade, Diversidade (Porto Alegre: Fabris), livro de 2003, estudo, elaborado nos anos 1980, pioneiro sobre o tema da alteridade e de crítica à antropologia do direito e à permanência do colonialismo, e Montesquieu (Lisboa: Chiado), estudo, também pioneiro, sobre a vinculação de estilo e projeto político, no século das Revoluções e do nascimento do constitucionalismo, livro lançado em 2018. Site: http://apd.org.br; email: aattiejr@gmail.com.