Por Vidomar Silva Filho
Quando o ônibus parou no ponto final em Santo Antônio de Lisboa, Francisco pôde finalmente tirar a filha do colo. Sentia as pernas meio adormecidas. Com quase oito anos, a menina ainda viajava no colo para não gastarem com mais uma passagem.
Elisandra tomou a criança pela mão. Ele encarregou-se da sacola com a comida, a toalha de piquenique e a muda de roupa da filha. Ao saltarem do ônibus, a mulher estava ainda mais irritada do que era seu normal.
– Motorista mais lerdo! É domingo, nem tem trânsito, e esse leso me leva quase uma hora do Centro até aqui. Mas tu também, né, Quico? Pra que vir pra praia no inverno, criatura?
– Primeiro que nem é inverno, Elisa. A gente tá em abril ainda. E tá quente hoje. Com esse sol, a menina pode até brincar na água.
– Mas logo Santo Antônio, Quico? Com tanta praia boa nessa ilha!
– Tudo longe. Mais perto só a Joaquina. Mas é mar grosso, água fria. E não tem uma sombra.
Francisco tinha outras razões para não gostar da praia da Joaquina. Ali estavam os surfistas e suas tietes, o povo que tinha dinheiro. Olhavam torto para quem levava comida de casa. Também não gostava de que ficassem encarando a feia cicatriz na sua perna.
– E eu gosto daqui de Santo Antônio, Elisa. O pai vinha aqui cuidar do jardim da italiana, a dona Edda, aquela que morreu de repente. Tinha um cajueiro, um gramado bonito. Pega a sacola aqui e vão indo, que eu já alcanço vocês.
Enquanto a mulher e a filha desciam em direção à praia, ele caminhou alguns passos até a esquina. A paisagem tranquila de Santo Antônio de Lisboa enchia-o de uma nostalgia suave, em que se misturavam uma vaga sensação de perda e o reacender de sentimentos confusos.
Lá estava a casa. Não se via mais o branco do muro, agora coberto de hera. Mas ainda era o mesmo portão de ferro pesado, exagerado, muito mais alto que o muro. O alaranjado feioso das paredes fora retocado recentemente. Por que não aproveitaram para trocar a cor? O cajueiro agora lhe parecia modesto, meio sem graça. A grama estava alta e cheia de inços. O pai ficaria triste…
Era um domingo assim, ensolarado. Francisco tinha doze anos. Ele e o pai iam de ônibus para Santo Antônio. Fazia uns meses que não acompanhava Antônio à dona Edda, desde que quebrara a vidraça com o pião. A porcaria não soltara da fieira e saíra voando. Em casa, tomara uma surra de cinta, porque o pai já tinha avisado que não brincasse com o pião na casa da italiana. O conserto da vidraça foi pago com serviço.
– Lá é pra tu te comportar direito, hein? Hoje tu não precisa me ajudar. É só pra brincar com os guri.
– São parente da dona Edda?
– Acho que não. São filho duma amiga dela que tá aí, da Itália. Ela veio passear com os filho pra cá. Parece que é um menino e uma menina, não sei direito. É gente rica. Vieram pra aproveitar o verão.
– Lá na Itália eles não têm praia?
– Parece que têm, Quico. Mas lá agora é frio. É que lá é tudo às avessa. Quando é verão é frio, quando é inverno é quente. Quando é de dia aqui, lá é de noite. Tudo o contrário. Esses italiano é tudo meio doido. Vê ali a dona Edda. Fala numa altura! Pensa que a gente é surdo. Fica braba por qualquer coisa, mas daqui a pouco já tá rindo e brincando de novo, como se nada fosse nada. Mês passado pechinchou até eu baixar o preço dum serviço de cento e oitenta pra cento e cinquenta. Mas depois, quando foi pagar, me deu uma gorjeta de cinquenta.
– Ela ainda ouve aquela música que parece cachorro uivando, pai?
– Quico, tu não vai me falar isso perto da mulher, hein?
Chegaram à casa. Dona Edda deu um olhar aprovador aos cabelos penteados de Francisco, à roupa limpa e aos tênis Conga, já puídos, mas cuidadosamente lavados pela mãe.
– Francisco, você entra e senta um pouco aqui na sala. Simone já vem brincar com você. Eles estão comendo alguma coisa. Antônio, eu quero que você pode a sebe. Vamos lá dar olhada nisso.
O menino ficou sentado na sala, na ponta do sofá, correndo os olhos pelos quadros nas paredes e pelos móveis. Descobriu que o armário esquisito era um piano. Ao vê-lo finalmente com a tampa do teclado aberta, sentiu vontade de dedilhá-lo. Mas sabia que isso lhe custaria uma bronca da italiana e outra surra em casa. Ouvia a mãe e as crianças conversando na cozinha. Pelas vozes, uma das crianças parecia ser bem pequena, pouco mais que um bebê. Estava chorosa.
Pensava no nome que ouvira, Simone. O pai tinha tirado ele de casa num domingo pra brincar com uma menina? Tinha jogo no campinho à tarde e ele ali pra brincar com uma menina! A italiana mandava mesmo.
Depois de pouco tempo, surgiram na porta que dava para a cozinha a hóspede da italiana e os filhos. A mulher vestia um roupão e as crianças, pijamas com desenhos de cães e gatos. Ambas tinham cabelos dourados e encaracolados. O menino estava no colo da mãe e escondeu o rosto nos cabelos dela quando o viu. A menina sorriu e lhe acenou timidamente. A mulher lhe disse “buongiorno”.
Ele quis dizer bom dia, mas teve um engasgo. A menina era a criatura mais linda que ele já vira. Tinha os cabelos até os ombros e a pele clara e um pouco rosada. Os olhos eram grandes, bem azuis. Acima dos lábios cheios e vermelhos, um narizinho de boneca. Os dentes eram todos certinhos e muito brancos. Tudo nela era lindo. Parecia mais uma pintura que gente de verdade. Lembrava a gravura do anjo da guarda que a mãe colara na parede, sobre a cabeceira do irmão mais novo.
Francisco sentia que estava vermelho. Quando finalmente conseguiu gaguejar um bom dia e fez menção de levantar‑se, a mulher lhe fez um gesto com a mão aberta e pediu:
– Aspetta un minuto, per favore.
A italiana e os filhos passaram por ele e subiram a escada. Francisco ouvia ruídos de gavetas abrindo e fechando no andar de cima, o choro da criança menor, uma ou outra palavra dita pela garota, com uma voz suave e aflautada.
Ela desceu em seguida. Calçava chuteiras novas e vestia um uniforme do Flamengo completo, com meias, calções e camiseta, que também parecia que nunca fora usado. Trazia uma bola oficial de futebol novinha em folha. Ele achou engraçado que pensassem que bastava comprar uniforme, chuteira e bola pra uma menina pra ela virar um jogador de futebol.
A menina estendeu-lhe a mão e ele a tomou desajeitado, com medo de apertar. Sentiu a mão dela macia e frágil, mas não teve coragem de encará-la.
– Me chiamo Simone. E tu, come ti chiami?
Ante a perplexidade de Francisco, a menina apontou para si própria.
– Sono Simone. E tu?
– Francisco.
– Francesco?
– Não, Francisco.
– Francisco? – Simone pronunciava ‘Frantchisco’.
– Pode ser só Quico mesmo. Qui-co.
– Chicco?
– Isso. Quico.
Saíram para o jardim. As grandes venezianas estavam fechadas. Não haveria chance de que uma bola mal chutada quebrasse novamente a vidraça.
Ela falava o tempo todo, mas ele nada entendia. Só conseguia sorrir. Foi até um canto do jardim e tomou duas pedras, que trouxe para fazer uma goleira num dos extremos do gramado. Simone imitou-o e fez outra goleira no extremo oposto.
Começaram a jogar bola. Ela era um pouco menor que ele e bem mais leve, magrinha. Era desajeitada, bruta, mas competitiva. Dividia as bolas com energia e agarrou‑se à camisa de Francisco duas vezes. Na terceira, ele parou a bola, pôs o pé sobre ela e olhou duro para Simone.
– Pera aí, Simone. Espera. Olha, não pode agarrar, não pode puxar a camisa – agarrou a própria camiseta, puxou-a e fez com o dedo o gesto de negativo.
Sua preocupação não era tanto com as regras, mas com a camiseta nova da escola. Se a rasgasse, certamente tomaria umas chineladas da mãe.
O jogo continuou. Simone não mais o agarrava, mas continuava bruta. Em alguns momentos, Francisco achava-a máscula demais, parecendo um guri.
Francisco driblou a menina de todos os jeitos possíveis. Bola entre as pernas duas vezes seguidas, meia-lua, chapéu, drible de corpo. Fez meia dúzia de gols.
Quando ele percebeu que ela começava a desanimar da brincadeira, repetiu o que sempre fazia com o irmãozinho menor: fingiu-se cansado e deixou que ela lhe tomasse a bola. Simone fez dois gols, que comemorou com gritos e pulos.
Subitamente, ele notou que as chuteiras de Simone estavam esburacando o gramado que o pai havia ajeitado. Por gestos, pediu para brincarem de outra coisa.
Foram para o cajueiro. Sentaram-se lado a lado num galho bem baixo, com os pés tocando o chão, e as coxas muito brancas da menina ficaram mais à mostra. Ele contemplou‑as fixamente, mas desviou o olhar quando percebeu que ela também olhava atentamente as próprias coxas, tentando entender o que ele vira. Ele subiu a um galho mais alto e gesticulou para que ela subisse também.
– Simone, sobe aqui, vem. Não tem perigo. Sobe.
– Non, Chicco. È troppo alto.
Francisco foi ainda mais alto, e a menina o chamou aflita, aos gritos:
– Sciendi, Chicco, sciendi. Per favore, Chicco, scendi!
Ele desceu e viu que a italianinha parecia prestes a chorar.
– Desculpa, Simone. Eu juro que não subo mais – enquanto falava, apontava para si, para o alto da árvore e balançava o dedo em sinal de negativa.
Enquanto tomava água na torneira do jardim, ele ouviu o claque-claque da tesoura do pai na poda da cerca viva. Sabia que deveria estar ajudando a recolher os ramos cortados. Mas entendia que desta vez o pai não o trouxera para isso.
Por gestos, Simone pediu-lhe que esperasse e entrou na casa com as chuteiras sujas de terra e grama. Francisco escutou quando a mãe gritou o nome da menina e esperou ouvir uma bronca, que não aconteceu. Simone voltou e ficou esperando junto à porta. A mãe lhe entregou uma tigela de morangos e outra de chantili.
Sentaram-se na grama, encostados ao cajueiro. Francisco, que conhecia morangos, mas não chantili, ficou sem saber direito o que fazer. Ela tomou um dos morangos, mergulhou-o no chantili e o comeu. Indicou a ele que fizesse o mesmo. A menina continuou a tagarelar enquanto comiam. Apontou na direção de uma laranjeira com os frutos ainda verdes e pareceu perguntar algo que ele não entendeu.
Francisco tornou a olhar as pernas da garota, muito claras. Envergonhou-se das próprias pernas, com mordidas de mosquitos e um esfolado no joelho. Também lhe constrangiam seus calçados puídos e agora sujos.
Ele olhava embevecido a menina enquanto ela se distraía raspando com o último morango os restos do chantili. Parecia-lhe ainda mais bonita com as maçãs do rosto avermelhadas pelo exercício e o sol. Viu um pouco de chantili no rosto dela e esticou a mão para limpar. Ela sorriu, mas recuou. Francisco falou “tá sujo”, apontando para o próprio rosto. Simone limpou o chantili, mas ainda deixou um pouco, e ele levou mais uma vez a mão. Ela segurou-lhe o pulso com gentileza e não deixou que lhe tocasse o rosto. Francisco pediu desculpas e levantou-se, encabulado.
Viram a mãe de Simone sair um pouco ao jardim com a criança menor, que tossia muito. Ele observou como ela falava com doçura ao pequeno, como afagava seus cabelos e o beijava. Sentiu o coração apertado, sem entender bem por quê.
De repente, lembrando-se de algo, pediu a Simone que esperasse e foi até onde o pai deixara a sacola com a garrafa de café e algumas bananas. Tirou de lá um saquinho de pano com as bolas de gude que ganhara do padrinho.
Veio mostrá-las a Simone. A garota maravilhou-se com as bolinhas. Foi pegando uma a uma e olhando-as atentamente. Ele tomou uma bolinha de um azul profundo, da cor dos olhos dela, e orientou-a a aproximá-la do olho e olhá-la contra a luz. Deslumbrada com as bolhinhas de ar flutuando no azul do vidro, a menina exclamou:
– Così bello! Sembra il cielo!
Depois correu até a mãe e pediu-lhe que também olhasse dentro da bolinha.
– Vedi, mamma. Sembra il cielo!
A mãe, que Francisco não vira sorrir até ali, pareceu alegrar-se com a euforia de Simone. Ele sentiu-se orgulhoso em ver a felicidade que provocara.
A menina voltou, tomou as outras bolinhas e foi olhando-as uma a uma contra a luz. Quando se fascinava com alguma, passava-a a ele para que também olhasse. Ficaram longo tempo assim. Ele preparava-se para escolher algumas bolinhas para dar a ela, mas dona Edda chamou-os e ele as guardou às pressas na sacola do café.
A italiana trouxe o almoço. Gritou primeiro em italiano para Simone, depois em português para Francisco. Eles comeriam na mesa no jardim, sob um guarda-sol. Ele estranhou que no prato houvesse só macarrão com um molho grosso esbranquiçado e pedacinhos de carne. Para beber, apenas água. Na sua casa, a refeição sempre tinha feijão, arroz, peixe frito, berbigão ou ovo, salada de alface e tomate. Domingo era dia de carne ou frango ensopado. Bebiam limonada ou, as mais das vezes, Ki-Suco.
Tentou recolher o macarrão com o garfo, mas os fios escorregavam e um caiu sobre a mesa. Ficou vermelho. Simone mostrou-lhe como pegar o macarrão enrolando-o com o garfo:
– Chicco. Così, Chicco. Avvolgi la pasta con la forchetta.
Imitando-a ele conseguiu levar melhor a comida à boca.
– Perfetto! Bravo, Chicco!
No restante do almoço, buscou fazer como ela. Viu que Simone puxava com o garfo as folhinhas verdes para o lado do prato. Observou a delicadeza como ela comia, com a boca fechada, os cotovelos fora da mesa, como usava constantemente o guardanapo.
Sentaram depois num banco estreito a comer bergamotas que dona Edda trouxera já descascadas. Simone sentou-se com as pernas abertas demais para uma menina. Ele sentiu a coxa da italianinha pressionar a sua e percebeu algo crescer-lhe dentro do calção. Envergonhado, encolheu-se, com o coração disparado.
Por insistência dela, voltaram a brincar de futebol. Num chute de longe, ela acertou o meio do gol e comemorou abraçando Francisco, que ficou sem reação. Sentiu o corpo da menina contra o seu, num breve instante que pareceu durar uma eternidade. Teve uma vontade súbita de beijá-la, mas refreou o impulso. Quando percebeu que aquela partezinha rebelde do seu corpo começava a assanhar-se de novo, desvencilhou‑se da garota e correu para pegar a bola. Sentia as orelhas latejando.
Depois de mais algum tempo jogando, ele teve urgência em urinar, mas sabia que não devia entrar na casa. Pediu a ela que esperasse e foi a um canto do jardim parcialmente escondido por uma roseira. Quando se voltou, viu que ela também fora para junto ao muro. Francisco não entendeu o que estava acontecendo até ver a menina levantar a frente da camisa, puxar um pouco o calção para baixo, levar a mão e trazer algo… Simone urinou de pé, como qualquer menino.
Tomado de surpresa e vergonha, ele desviou rapidamente o olhar, mas logo voltou a fitar Simone, incrédulo. Depois olhou nervoso em volta, com medo de que o pai os estivesse vendo. Tornou a observar atentamente Simone enquanto o menino voltava para o gramado.
Agora ele sabia que Simone não era uma menina, mas surpreendia-se em descobrir que ainda o via tão belo como antes. Admirava-se de como um menino podia ser tão bonito. Subitamente, sentiu raiva. Raiva do menino italiano, raiva da italiana rica com seus filhos mimados, raiva da italiana velha que fazia o pai trabalhar num domingo, raiva do pai que o fizera perder o futebol pra vir distrair um guri besta.
No gramado, Simone tentava canhestramente fazer embaixadas. Francisco correu até ele, tomou-lhe a bola, fez embaixadas com os pés, os joelhos, os ombros, a cabeça. Depois, deu-lhe vários dribles, sem deixar que ele tocasse a bola e fez um gol, que comemorou com um urro selvagem. Simone olhava-o espantando. Não satisfeito, Francisco correu até o cajueiro e rapidamente alcançou um dos galhos mais altos, onde se pôs a balançar perigosamente. O garoto começou a gritar-lhe em aflição:
– Checco, scendi, per favore. Scendi, Checco. Checco! Per l’amor di Dio, Checco!
Caindo em si, Francisco viu o olhar apavorado do menino e percebeu que ele estava em pânico. Desceu rapidamente. O italianinho falava uma enxurrada de palavras que Francisco não entendia, mas sabia que eram de susto e queixa. Estava pálido e tremendo. Cheio de remorso, Francisco viu como ele parecia frágil e assustado. Meio desajeitado, enlaçou-lhe ternamente os ombros e buscou consolá-lo:
– Desculpa, Simone. Desculpa, viu? Eu juro por Deus que não faço de novo, juro.
Com o menino mais calmo, ele buscou a bola e chamou-o a brincar novamente. Deixou que ele fizesse mais alguns gols, que comemoraram juntos. Olhando Simone correr e saltar depois de um gol, Francisco agora achou que o outro parecia feminino demais para um guri.
No fim da tarde, o pai apareceu no jardim, já com a sacola do café e a tesoura de poda nas mãos.
– Quico, já acabei aqui. Vamo embora. Diz tchau aí, que tá quase na hora do ônibus.
Francisco ofereceu a mão a Simone, mas ele o abraçou forte e demorado. Surpreso, Francisco também o abraçou afetuoso. Sentiu sob os dedos as costelinhas do menino, que lhe parecia agora muito magrinho, pequeno e fraco. Não sabia por que sentia tanta vontade de chorar.
Separaram-se do abraço e Simone começou a falar-lhe com doçura. Depois tirou do pescoço um colar de ouro com um crucifixo. Três pequenos rubis marcavam o lugar dos cravos. Fez Francisco virar de costas, passou a correntinha em volta do seu pescoço e travou o fecho. Depois virou-o de frente e pôs o crucifico para dentro de sua camiseta.
Francisco tornou a abraçar o amigo. Quando se afastaram, viu que Simone tinha o rosto molhado por lágrimas. Quis dizer alguma coisa, mas o pai tornou a gritar que fosse logo. Só conseguiu acenar e sair correndo. De repente, lembrou-se das bolinhas. Arrancou a sacola das mãos do pai, pegou o saquinho e voltou correndo para entregá‑lo a Simone. Antônio berrou insistente:
– Anda, Quico! A gente vai perder o ônibus!
No ônibus, o pai troçou, dizendo que a italianinha tinha gostado dele. Francisco só lhe respondeu que Simone era um menino.
– O quê? Com aquele cabelo? E lá Simone é nome de guri? Essa italianada é doida até pra botar nome em filho!
O menino nada disse e virou para o lado da janela fingindo olhar a paisagem. Sentia um peso no peito, uma tristeza fininha, doída e um cansaço enorme, muito maior do que se tivesse passado a tarde no futebol. Estava quebrado.
Em casa, quando tirou a camisa, a irmã pediu para ver o crucifixo. Segurou-o entre os dedos e examinou-o atentamente com olhos cobiçosos.
– Dá pra mim, Quico?
– Nem vem, Isabel. Foi presente dum menino lá na dona Edda, o Simone.
Isabel duvidou que um menino se chamasse Simone. O pai confirmou que era verdade. Ela soltou uma gargalhada e disse que o tal italiano devia ser mariquinha. Tomado de fúria, Francisco partiu para cima da irmã. Mas o pai o agarrou pelo braço e o mandou brincar no quintal. Dali por diante, a quem perguntava, Francisco passou a dizer que o crucifixo fora presente da madrinha.
Passaram os dias e ele sofria sem saber direito por quê. Sentia um aperto no peito, uma tristeza que não passava nunca. Não conseguia fixar o pensamento em nada. Esquecia o que lhe mandavam comprar na venda. Passava o tempo olhando os carreiros de formigas. Deitava-se no chão e ficava mirando as nuvens. Sentia que algo novo brotara dentro dele. Mas para isso algo precisara morrer. Havia chorado muito quando o gato comeu o seu coleirinha no fim do ano. Mas aí ao menos ele sabia por que estava triste. Nada de antes parecia com isso.
Duas semanas depois, Antônio foi novamente chamado a trabalhar na casa da italiana. Francisco pediu para ir junto. Lá esperou que ela desse as ordens ao pai, que foi para o jardim. Vendo-se a sós com dona Edda, Francisco perguntou por Simone.
– Chiara já voltou pra Milão com os meninos – explicou-lhe dona Edda.
– Pensei que o Simone fosse ficar as férias toda aqui.
– Na Itália já voltaram as aulas, Francisco. E Simone foi tocar num concurso. Ele está começando uma carreira de pianista. É muito talentoso. Já é coisa de família. Chiara é flautista. O pai do Simone também era pianista. E o primo Francesco, o Checco, tocava violino.
– Eles não tocam mais, dona Edda?
– Não, Francisco. Tommaso e Francesco morreram num acidente de carro. Isso faz um ano. Checco tinha mais ou menos a tua idade. Ele e Simone eram como irmãos.
Francisco sentiu que em seu peito o dique finalmente se rompeu. Sentou‑se no sofá e chorou muito, sem pudor algum. Entre soluços, repetia:
– Eu não sabia, dona Edda. Eu não sabia. Coitadinho do Simone, coitadinho…
Tomada de surpresa, a italiana sentou-se ao lado dele e abraçou-o com ternura.
– Não precisa chorar assim, Quico. Não chore, menino. No ano que vem o Simò volta.
Jamais voltou.
– Meu Deus, Quico! Eu tô a te chamar faz um tempão, homem! Eu já estendi a toalha na sombra lá embaixo, perto das pedra. Anda, criatura, que a menina tá sozinha lá.
Ele não viu remédio senão ir seguindo a mulher. Ao dar um passo meio em falso, o estalo e a dor no joelho o fizeram lembrar da idiotice com a moto que o tirara definitivamente do futebol e o fizera jardineiro como o pai.
Puxou para fora da camisa o crucifixo, agora preso ao pescoço por um cordel. Acariciou-o entre os dedos. Parecia‑lhe bem menor de que quando o ganhara quinze anos antes.
Como estaria o Simone?
Acordou do devaneio com a mulher chamando a filha, que tentava construir um castelinho de areia.
– Anda, vem comer, Simone!
Vidomar Silva Filho é doutor em Linguística pela UFSC. Professor de Língua Portuguesa e Literatura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC)