Entrevista com Luana Cruz Bottini
Viver à margem da sociedade será causa ou consequência?
Adriana do Amaral
A pandemia da #Covid-19 desvelou uma realidade antiga, mas ignorada por boa parte da sociedade brasileira: o drama do “Povo da Rua”. Cidadãos brasileiros e imigrantes que não têm teto, renda e direitos. Gente que vive ao relento, embaixo de pontes e viadutos, sem perspectivas de vida senão sobreviver à violência das noites e a fome do dia-a-dia.
O número das pessoas em situação de rua aumentou consideravelmente desde março de 2019. O #isolamentosocial que deveria proteger contra o #coronavirus aumentou a desigualdade com o agravamento da crise econômica e o desemprego. Se antes o cidadão padrão nas ruas era solitário, atualmente são famílias inteiras que tentam sobreviver.
Na rua há de tudo: idosos e crianças abandonadas, adolescentes e mulheres que fogem da violência doméstica, homens que se perderam das famílias. Pessoas com deficiência, vítimas do alcoolismo e drogas, doentes mentais. Pessoas que vivem à margem dos padrões como cidadãos transexuais, profissionais do sexo e egressos do sistema prisional, que não encontram o seu lugar na sociedade excludente.
Para entender melhor esse universo múltiplo é preciso se debruçar sobre as causas e consequências, como fez a psicóloga e educadora social Luana Cruz Bottini. Atuando com a população em situação de rua desde 1998, ela foi Coordenadora Técnica Nacional do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte entre os anos de 2005 e 2007, coordenou a Mobilização Nacional pela Erradicação do Subregistro Civil de Nascimento (2008 e 2010) e a Política Municipal para População em Situação de Rua de São Paulo (2013 e 2017). Atualmente, é Gerente de Projetos Sociais voltados para Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos.
CONSTRUIRRESISTÊNCIA: Os distúrbios mentais podem levar uma pessoa para a rua? Isso acontece pela perda da razão ou por dificuldades de relacionamento familiar/social? Você saberia estimar a porcentagem dos pacientes com doenças mentais entre a pop rua?
Luana Cruz Bottini: É difícil responder o que leva uma pessoa à rua. Como definir os desejos e necessidades individuais em uma sociedade cada vez mais intolerante e controladora? Tem famílias que julgam que seus filhos estão com problemas, pois se expressam de modo diferente do “padrão” e se interessam por coisas diferentes. Qual o problema nisso? A intolerância e o sofrimento geram a não aceitação, em especial pelas pessoas da família que, em tese, deveriam proteger e proporcionar espaços de segurança física e emocional. A intolerância ao diferente é um causador de transtornos mentais, compreendendo que Saúde Mental é um estado de bem-estar físico, mental e social.
Eu destaco os vínculos familiares interrompidos e acrescento a interrupção dos vínculos comunitários, que considero estratégico quando falamos de pessoas em situação de rua. Diante de grandes dificuldades financeiras, se alguém ainda tem vínculos familiares e comunitários estabelecidos, a pessoa consegue ajuda de um ou de outro e não vai para situação de rua. Conforme os vínculos vão se rompendo, as redes protetivas se fragilizam e as situações de vulnerabilidades tornam-se mais complexas de serem superadas.
O Decreto 7.053/2009, que a Institui a Política Nacional para População em Situação de Rua, considera a população em situação de rua “o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”. Mas, são vários os fatores que levam um indivíduo a viver na rua.
A situação de rua está cheia de casos de transtornos mentais, mas não dispomos de pesquisas que consigam precisar se as doenças vêm, em sua maioria, antes ou depois da rua. Entrar para situação de rua é muito sofrido, gera muitos medos, muitas vergonhas, muitos estresses, que desencadeiam graves processos de sofrimento mental. Inclusive, um aumento ou início de uso de substâncias psicoativas, na tentativa de amenizar as dores causadas pela situação de rua que violentam o corpo e a mente.
A publicação “Saúde Mental das pessoas em situação de rua – Conceitos e Práticas para profissionais da assistência social”, multicêntrica internacional, organizada pela psiquiatra Carmen Santana e pelo enfermeiro Anderson Rosa, em 2016, trata detalhadamente do assunto numa linguagem bastante acessível. O estudo traz indicadores interessantes e menciona pesquisa realizada entre 2007 e 2008 com pessoas em situação de rua, no Brasil. Ela aponta que 70,9% das pessoas nesta situação declararam exercer alguma atividade remunerada. E afirma que “o apoio a jovens em situação de risco para a situação de rua pode diminuir a incidência de transtornos, além de melhorar a Saúde Mental desses indivíduos”.
CONSTRUIRRESISTÊNCIA: As condições de vida, isolamento, higiene, abandono e violência, comuns nas ruas podem aumentar a incidência ou de problemas mentais (ou agravar o estado dos doentes mentais) entre as pessoas em situação de rua? Um cadastro único poderia ajudar a aproximar esses doentes de suas famílias?
Luana Cruz Bottini: A situação de rua é violenta, estressante, perigosa. Por isso, é complicado ficar nela e manter uma boa saúde mental. O fato de estar em situação de rua é gerador de grandes sofrimentos psíquicos, que podem se agravar para graves problemas de saúde físicos e mentais.
Boa parte da população em situação de rua está cadastrada no Cadastro Único da Assistência Social (CAD Único), que serve de porta de entrada a diversas políticas públicas e permite os profissionais dessas políticas conhecerem os atendidos e, se julgarem necessário, procurarem e acionarem familiares. Mas a questão é: quem é a família da pessoa? Muitas vezes, os próprios familiares são os principais causadores dos sofrimentos psíquicos e expulsam seus parentes de casa. Tem idosos abandonados à própria sorte depois de terem criado e sustentado seus familiares. Então, não basta uma aproximação. É necessário um intenso trabalho de ressignificações e fortalecimento de vínculos.
É claro que existem pessoas com transtornos mentais que se perdem. Precisamos ter uma forma eficiente para identificá-las e ajudá-las e voltar para suas casas. Se conseguirmos alimentar os cadastros existentes, em tempo real, e operacionalizá-los para proteger as pessoas e garantir seus direitos, conseguiremos resolver muitos problemas. Mas, para isso, faz-se necessário investir em profissionais (ampliação e formação), ferramentas e tecnologias para atendermos melhor a população em situação de vulnerabilidade social. É necessário priorizar esse público na formulação das políticas públicas e principalmente na execução. Ou seja, no orçamento.
CONSTRUIRRESISTÊNCIA: Os pacientes diagnosticados com doenças mentais podem ser considerados mais vulneráveis em relação à #Covid-19? Como ajudar essas pessoas em tempo de pandemia?
Luana Cruz Bottini: É muito difícil generalizar. Eu, particularmente, tenho dificuldades em trabalhar com o conceito de doença mental, pois acredito que doença é uma palavra muito forte, que rotula e estigmatiza as pessoas, além de responsabilizar os indivíduos por situações causadas pelo contexto em que estão inseridos. Às vezes, chamamos de doente mental alguém que está passando por grande sofrimento psíquico, mas dizer que essa pessoa está mais vulnerável a #Covid-19, eu não sei. Talvez mais vulnerável a seus impactos.
As situações de isolamento e insegurança com o futuro agravam sofrimentos psíquicos. Quem já estava em situação delicada pode ficar ainda pior. Mas, se o transtorno da pessoa for outro, uma grave desconexão com a realidade. Talvez seja mais complicado compreender e seguir os protocolos recomendados pelas autoridades de saúde.
Tenho visto tantas pessoas aparentemente em boas condições mentais, não seguindo os protocolos, autoridades públicas que deveriam informar e orientar a população a se proteger fazendo o oposto. Acho que, em tempos de #pandemia, a população deveria se unir, seguir as orientações das autoridades em saúde e disseminar informações técnicas construídas com bases científicas. Infelizmente, não é bem isso que estamos vivendo. O que gera mais sofrimentos psíquicos e riscos pessoais e sociais.
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Importante essa entrevista que amplia nossa visão sobre a população de rua, colocando experiência e conhecimento para balizar uma percepção que temos amiúde ao cruzar com essas pessoas: o grande sofrimento psíquico que vivem, além das privações materiais. As redes de proteção devem ser legitimadas e potencializadas em termos de ação e orçamento.
Tania, obrigada pelo comentário. Poucos têm sensibilidade com a dor desas pessoas.