Por Sylvia Leite no Blog Lugares de Memória
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O lugar abriga hoje a praça 14-Bis, uma das mais conhecidas do Centro de São Paulo, mas até o início do século 20 era ocupado pelo Quilombo Saracura – formado por escravizados fugitivos que escapavam das fazendas ou de feiras realizadas no Vale do Anhangabaú, onde eram colocados à venda por seus senhores. O quilombo não foi descrito nos livros que contam a história oficial da cidade, mas ficou guardado na memória da comunidade negra e começou a ganhar publicidade a partir de achados arqueológicos surgidos durante escavações realizadas para a construção de uma estação de metrô.
Quem visitar hoje o local, certamente não terá acesso a esse acervo, composto principalmente por cacos de garrafas e louças datadas do começo do século 20, mas poderá testemunhar a luta do movimento negro, arqueólogos, instituições culturais e moradoresdo Bixiga pelo resgate desse sítio arqueológico. Cartazes com os dizeres “Não somos contra o Metrô, somos contra o apagamento histórico” traduzem suas duas principais reivindicações.
A primeira é a criação de um memorial educativo permanente que resgate a história do Quilombo Saracura e lhe dê um lugar na história de São Paulo. A segunda é a troca do nome da estação – prevista para se chamar 14-Bis em alusão ao nome da praça – para Saracura Vai-Vai, em homengem ao quilombo e à tradicional escola de samba cuja quadra funcionou históricamente no local e foi desalojada para a realização das obras.
Saracura: berço do samba paulistano
O Saracura foi um dos primeiros quilombos de São Paulo, e acredita-se que deve ter servido, inicialmente, como ponto de descanso na rota de fuga de escravizados, consolidando-se mais tarde como lugar de moradia permanente. Suas casas estendiam-se em linha reta ao longo do córrego Saracura, um afluente do rio Anhangabaú, atualmente canalizado.
Segundo texto publicado no Correio Paulistano, de 3 de outubro de 1907, a área do Quilombo Saracura era conhecida, no início do século 20 como Pequena África. Mais tarde, o local passou a ser chamado de Quadrilátero Negro ou Quadrilátero do Saracura, apelidos que de alguma forma permanecem até hoje.
O antropólogo Alessandro Luís Lopes de Lima , em artigo publicado na revista Argumentos, da Universidade de Montes Claros – Unimontes, afirma que “a região do Quilombo Saracura foi um dos berços paulistanos do samba de bumbo e do batuque”. Ainda segundo seu texto, o local era de sambas de roda, choros e blocos carnavalescos.
Não é por acaso que a quadra do Vai-Vai funcionava local. Foi ali que surgiu, em 1930, o cordão carnavalesco que lhe deu origem: o Vae-Vae. Seus fundadores eram sambistas dissidentes da torcida do clube de futebol “Cai-Cai”, conhecidos na época como a “turma do Vae-Vae”. Os sambistas escolheram para o cordão as mesmas cores do Cai-Cai, só que de forma invertida: o clube era branco com preto e o cordão nasceu preto com branco, combinação que se mantém até hoje.
O Quilombo Saracura e o Vai-Vai – chamado assim no masculino pelo fato de ser um grêmio recreativo – estão ligados de diversas formas. Além de ter surgido na área do quilombo, e de ser composto, em grande parte, por negros.
provavelmente descendentes dos ex-escravizados que criaram e habitaram o quilombo, o Vai-Vai recebeu o apelido de Saracura. Inicialmente, o apelido foi tido como pejorativo, mas com as vitórias acumuladas pela escola torou-se motivo de orgulho.
Saracura, além de ser o nome do córrego ao longo do qual o Quilombo se estabeleceu, é também o nome de um pássaro que habitava a região ribeirinha. Coincidência ou não, a espécie guarda algumas afinidades com os habitantes do quilombo e seus descendentes. Como os negros fugitivos, procura fazer seus ninhos em lugares de difícil acesso, comumente em áreas de vegetação fechada, a fim de não ser pega pelos predadores. Já com o Vai-Vai, compartilha o canto estridente.
O Saracura e a formação do Bixiga
O samba, hoje representado pelo Vai-Vai, não é a única herança deixada pelo Quilombo Saracura no Bixiga. Foram os negros fugitivos os primeiros a chegar à região, bem antes dos italianos que, durante décadas, apareceram como povo hegemônico do local. Sua influência na formação do bairro está gravada de diversas formas, a começar pelos nomes de locais públicos como a Rua 13 de Maio, que remete à data de assinatura da Lei Áurea.
A Escadaria do Bixiga, um dos pontos históricos da região, é lavada anualmente no Dia da Abolição, em um tradicional ritual de matriz africana semelhante à famosa Lavagem do Bonfim, em Salvador, na Bahia. Essa escadaria é considerada um marco da aproximação entre os brancos – que habitavam mansões localizadas no alto do morro – e os negros que habitavam a parte baixa e pobre da cidade.
A área que será ocupada pela estação de metrô e diversos outros pontos do Bixiga ainda abrigam afrodescendentes, tanto que a itlianíssima Igreja da Achiropita é sede de uma Pastoral Afro responsável pela realização de cerimônias sincréticas entre as quais se destacam os Batismos Inculturados ou Batismos Afros que mesclam a cerimônia católica com cantos, danças, indumentárias e bênçãos de origem africana.
A luta pela memória do quilombo
Referências ao Quilombo Saracura sempre estiveram presentes nos movimentos negros e sua memória costuma ser exaltada periodicamente pela Escola de Samba Vai-Vai. A existência do quilombo está registrada em mapas, textos jornalísticos e trabalhos acadêmicos. Mas foi a partir do início da obras de ampliação da linha 6 Laranja do movimento em prol de sua memória ganhou força. Inicialmente porque para dar início à construção de uma estação no local, era preciso desalojar a Vai-Vai. Depois por causa dos achados arquelógicos.
Ocorre que por exigência da legislação brasileira, qualquer obra de grande vulto tem que ser precedida de uma pesquisa arquelógica que garanta a preservação de eventuais sítios soterrados no local. No caso da Linha Laranja do Metrô, os trabalhos foram realizados pela empresa de arqueologia a A Lasca, que localizou as primeiras peças em abril de 2022.
A descoberta do material arqueológico provocou a interrupção das obras da estação e o início de um processo junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, em que A Lasca solicita “autorização para o salvamento emergencial do sítio Saracura/14 Bis” e apresenta pesquisa histórica sobre a importância do Quilombo Saracura na formação da região do Bixiga e da cidade de São Paulo.
Embora até o momento, os relatórios da empresa A Lasca ainda não garantam a relação dos primeiros achados com o Quilombo Saracura, está evidente, pelos relatórios apresentados ao Iphan, que sua equipe acredita tanto na possibilidade de se confirmar a relação desses objetos com o quilombo, como na perpectiva de serem encontrados outros objetos – talvez mais específicos da cultura africana – na medida em que se aprofundarem as escavações.
Enquanto a empresa A Lasca avança em suas análises, a empresa responsável pelas obras da estação, hoje chamada de 14-Bis, trabalha em obras de contenção para viabilizar a continuidade das escavações. Ao mesmo tempo, o coletivo Mobiliza Saracura Vai-Vai prepara um amplo Programa de Educação Patrimonial que prevê o resgate e a divulgação da memória do Quilombo Saracura e deverá incluir desde ações museológicas até projetos educativos e de divulgação, com assessoria do arqueólogo Rossano Lopes Bastos.
Segundo Bastos, faz parte do programa, ainda em elaboração, a exigência da participação da comunidade no processo de resgate do quilombo, inclusive nas análises técnicas por meio de arqueólogos negros