
No momento em que se chora a tragédia no Litoral Norte de S. Paulo, que teve como epicentro a cidade de São Sebastião, com 59 mortos até agora, 2.251 desalojados e 1.815 desabrigados, vale à pena lembrar que essa não foi a pior, nem a com maior número de mortos. E, provavelmente, não será a última.
Também no Litoral paulista, mais especificamente em Cubatão, na Baixada Santista, nesta mesma data – 25 de fevereiro – há exatos 39 anos, centenas de famílias choravam seus mortos no incêndio criminoso da Vila Socó. Eu estava lá.
Como há quase quatro décadas, as vítimas são as mesmas: os pobres, os pretos, na sua maioria retirantes nordestinos, expulsos para as margens, para os mangues como caranguejos, para as encostas dos morros, os únicos espaços que lhes restaram para sobreviver e manter suas famílias.
Como na Vila Socó, o que não faltam são as manifestações de comoção, o falso ativismo de autoridades lenientes com a desgraça dos pobres, ciosas de holofotes de uma mídia que, com as exceções conhecidas, fomenta a lógica do processo perverso de exclusão – causa primeira e primária dessas tragédias programadas.
Não há necessidade de ciência para se constatar a causa de tais tragédias. Uma elite canalha, predatória, escravista em pleno século XXI, mantém a maioria da população submetida a maior desigualdade social do planeta, desigualdade produzida e que é irmã siamesa do regime de escravidão que por aqui vigorou por mais de 300 anos.
Especialistas em Meteorologia tentam explicar a incrível coincidência de eventos – frente fria avançando pelo litoral, aquecimento das águas do mar, formação de nuvens carregadas potencializadoras de fortes chuvas – 683 milímetros acumulados no período, o maior já registrado pelo sistema em 24 horas; a demografia com a serra do Mar servindo de barreira de contenção a dispersão das nuvens.
Outros buscam explicações nas mudanças climáticas, no efeito estufa; os defensores da filantropia aproveitam seus 15 minutos de fama; não faltam os fariseus de plantão, os apóstolos da falsa caridade cristã.
Na Vila Socó, há 39 anos, não puderam utilizar tais argumentos. Não houve chuva, não houve tempestade. Mas, houve choro e ranger de dentes; houve uma multidão de desvalidos transformados em cinzas, poeira a se misturar com a lama do mangue fétido.
Porque, no caso, o incêndio que em horas devorou centenas de casebres e pessoas, e potencializou a explosão sincronizada de centenas de botijões de gás de cozinha, foi provocado mesmo pela conduta criminosa da empresa – a Petrobrás – que tinha a responsabilidade de fazer a manutenção das tubulações; pela conduta omissiva do Estado representado pelo Poder Público (Estado e Prefeitura) que tinham o dever de evitar as mortes, retirando a população.
Está provado que o vazamento começou no início da tarde do dia 24 e a explosão do incêndio só ocorreria por volta das 23 horas se estendendo pela madrugada e manhã do dia 25 de fevereiro; ou seja: passaram-se pelo menos 10 horas, tempo suficiente para que todas as pessoas salvassem suas vidas e não fossem reduzidas a tocos, pedaços humanos – imagens macabras que ainda conservo nas retinas e na minha memória -, ou transformados em cinzas.
Os fatos que se seguiram são conhecidos: a Petrobrás, ainda sob a ditadura militar (governava o último dos generais, João Batista Figueiredo) e sob o comando de um serviçal do regime, o então presidente da estatal, Shigeaki Ueki, acionou a “Operação Abafa”, para reduzir o número de mortos, estimados em cerca de 800 pessoas, para apenas 93; paralisou as investigações conduzidas pelos promotores Marcos Ribeiro de Freitas, José Carlos Pedreira Passos; e garantiu a impunidade dos responsáveis pelos crimes, nas esferas municipal, estadual e federal.
Ao contrário do que aconteceria anos depois no caso da Boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em Cubatão, ninguém foi levado ao banco dos réus. A impunidade prevaleceu e se mantém até hoje. (Na foto ao lado, a Comissão da OAB que impediu a incineração dos documentos. A segunda da direita para a esquerda é Bianca Calaffati, incansável lutadora que teve papel destacado na luta pela preservação da memória e da história).
Sob o regime de truculência e violência, assustadas e desamparadas, traumatizadas pela perda de seus entes queridos, famílias inteiras aceitaram indenizações humilhantes, as que tiveram alguma, já que boa parte delas, as que perderam filhos com até 12 anos – a maioria – sequer foram alcançadas por qualquer compensação pelas perdas materiais e humanas.
A Petrobrás utilizou o argumento nazista de que essas famílias não precisavam ser indenizadas, pois as crianças até essa idade, ainda não se constituíam em força produtiva.
Tais fatos, tais crimes, só vieram à luz por conta do trabalho incansável de uma Comissão constituída pela OAB/Cubatão, em 2014, formada por mim e pelos doutores André Louro e Luiz Marcelo Moreira, que tomou a iniciativa de fazer parceria de trabalho com a Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, da Assembléia Legislativa de S. Paulo, presidida pelo então deputado e ex-preso político, Adriano Diogo.
Deve-se a esse trabalho, o fato dos documentos de 22 volumes do processo terem escapado de outro incêndio: a incineração promovida pelo Tribunal de Justiça de S. Paulo para processos arquivados há mais de 30 anos. Todos estão microfilmados e à disposição de pesquisadores comprometidos com a luta para impedir o apagamento da memória – vale dizer – da história, como política de Estado.
No caso do Litoral Norte, como também ocorreu em Petrópolis, no Rio, não se pode esperar outra coisa. Em alguns anos, quiçá meses, o assunto desaparecerá dos holofotes da mídia, os analistas sumirão, e ninguém mais se lembrará dos mortos e suas famílias.
São, como na Vila Socó, prestadores de serviços a uma classe dominante predatória e parasita, herdeira e beneficiária da escravidão e que mantém na sua agenda uma única preocupação: a manutenção dos privilégios à custa da exploração, das humilhações e das “tragédias” programadas em que as vítimas são sempre as mesmas.
Como na música de Caetano, são “quase todos pretos/ou quase pretos/ou quase brancos, quase pretos de tão pobres/ E pobres são como podres/E todos sabem/Como se tratam os pretos”.
Terá que haver neste país uma data a ser gravada com letras de sangue no nosso calendário: o dia do ajuste de contas.
Dojival Vieira é advogado, jornalista e editor responsável pela Afropress. Foi membro da Comissão da Verdade da “Operação Abafa” constituída pela OAB/Cubatão que desmascarou a “Operação Abafa” desencadeada pela ditadura para garantir a impunidade dos responsáveis pelo incêndio da Vila Socó.
Foto da capa: Juvenal Pereira