São Petersburgo, a cidade de gelo

Por Francisco José Nunes

Análise do filme, sem spoiler!

O filme #CidadedeGelo não é apenas um drama romântico. Ele é um mergulho na Rússia, em sua fase mais acelerada rumo à #Revoluçãode1917. O berço dessa revolução é a cidade de #SãoPetersburgo.

O filme trata do romance entre Matvey (Fedor Fedotov), um jovem proletário, e Alice (Sofia Priess), uma jovem da aristocracia russa. Matvey trabalha como entregador para uma confeitaria chique de São Petersburgo, a “Le Grand Pie”. Entretanto, certo dia ao receber a tarefa de entregar uma encomenda com urgência, ele não consegue entregar dentro do prazo previsto. A consequência é que ele foi demitido e humilhado pelo proprietário da confeitaria. O motivo do problema foi a interrupção de uma das principais avenidas de São Petersburgo para a passagem da carruagem de um membro da aristocracia local.

Cabisbaixo, Matvey cruza o caminho de Alexey (Yuriy Borisov), chefe de uma gangue de batedores de carteiras. Mas essa gangue tem suas peculiaridades, por um lado o estilo Robin Hood e por outro lado a simpatia com as ideias marxistas que fervilhavam na Rússia, nas últimas décadas do Século XIX. Além de estar desempregado, Matvey também está preocupado com seu pai – Pietr – pois ele está com um estágio avançado de tuberculose e precisa de muito dinheiro para fazer um tratamento especializado. Por este motivo Matvey entra para a gangue. O pai de Matvey trabalha como acendedor de lampiões de rua, ele precisa acender 50 lampiões no início da noite e apagar os mesmos lampiões na manhã seguinte. Um trabalho miserável!

Depois de um certo tempo, Matvey mostra uma grande quantidade de dinheiro para seu pai. Mas o pai não aceita porque desconfia que a origem do dinheiro tenha sido o roubo. Ocorre uma discussão muito tensa entre pai e filho, culminando numa declaração de Matvey que coloca em dúvida a existência de Deus. Trata-se de uma referência ao pensamento niilista, que nasceu na Rússia durante o Século XIX.

Durante uma das andanças noturnas da gangue pelas ruas de São Petersburgo, Matvey identifica no portão de uma mansão o mesmo brasão da carruagem que interrompeu a avenida e que foi o principal motivo para sua demissão como entregador da confeitaria. Então a gangue decide entrar no jardim da mansão e deixar sua marca no palácio. Mas ao subir em uma das sacadas do palácio, Matvey conhece Alice. Ocorre um acidente e ele vai embora rápido.

Alice é uma jovem que recebe a educação tradicional da aristocracia russa. Ela tem uma preceptora inglesa, que ministra lições de etiqueta, língua inglesa e cultural geral. O desejo de Alice é fazer faculdade de Química. Mas seu pai, Nikolai Vyazemsky (Ministro do Czar), é contra o acesso de mulheres ao ensino superior. Ela queria ser aluna do cientista Sergey Koltakov. Esse personagem representa o cientista Dmitri Mendeleev, o criador da “Tabela Periódica dos Elementos Químicos”, que era professor em São Petersburgo. Mendeleev nasceu na Sibéria e durante sua adolescência recebeu aulas de Ciências de seu cunhado Bessagrin, um simpatizante do “Movimento Dezembrista”. Este movimento defendia uma “monarquia parlamentar” e várias ideias progressistas. Mendeleev irá defender essas ideias ao longo de sua vida, inclusive o direito das mulheres ao ensino superior.

Numa determinada cena do filme Alice recebe um presente de Alexey (o líder da gangue) o volume I da obra “O Capital”, de Karl Marx. A primeira tradução desse livro, escrito em alemão, para outra língua, foi justamente para a língua russa. A primeira edição em russo foi publicada em 1872, cinco anos depois da publicação da edição original em alemão e quinze anos antes da tradução para o inglês.

Mais adiante o pai de Alice dá um flagrante no quarto dela e a encontra lendo “O Capital”. Ele diz que ela está influenciada por ideias “dezembristas” e manda queimar imediatamente todos os livros dela. É importante registrar que no período em que ocorre o filme, final de 1899 e início de 1900, Lênin exerce uma grande influência em São Petersburgo. Ele participou da criação do partido “União da Luta pela Libertação da Classe Operária”, em 1895; mas foi preso em 1897 e enviado para cumprir pena na Sibéria até 1900. Lênin fez faculdade de Direito em São Petersburgo e sempre foi um aluno brilhante.

O contexto histórico do filme é muito importante, porque trata da última fase do czarismo e da fase anterior à Revolução de 1917. O Czar Nicolau II, que exerceu o poder de 1894 até 1917, era um governante indeciso e inexperiente. Para comemorar a sua entronização, foi anunciada uma festa popular com comida, bebida e entrega de brindes para o povo. Entretanto, o precário planejamento da festa resultou numa grande tragédia, no dia 18 de maio de 1896. O grande número de pessoas que se dirigiu para o Campo de Khodynka (em Moscou) e a falta de organização adequada resultou na morte de cerca de 1.500 pessoas pisoteadas e no ferimento de cerca de 20.000 pessoas. Por este e por outros motivos, Nicolau II ganhou o apelido de “o Sanguinário”.

O filme tem um roteiro leve e ágil; tem uma boa mescla de romance, humor e fantasia. Adota inúmeras referências cinematográficas, dentre elas: “Titanic”, “Romeu e Julieta”, “Robin Hood”, com uma estética dos “Contos de fadas da Disney”. Isso pode transformar o filme num bom passatempo.

Na trilha sonora, o melhor da música clássica: Debussy, Bach, Haydn, Wagner, Strauss e Tchaikovsky. O músico russo Piotr Tchaikovski estudou em São Petersburgo, na França e na Alemanha. Quando retornou para a 

Rússia (1879) foi tratado como um músico “excessivamente ocidental”. Foi graças a uma campanha encabeçada pelo escritor Dostoievski, que a obra de Tchaikovsky passou a ser tratada como uma “música universal” e bem aceita na Rússia. O músico e o escritor, dois gênios que viveram em São Petersburgo neste período. Tchaikovsky morreu em 1893 e Dostoievski em 1881. Em 2021 vamos comemorar os 140 anos do nascimento de Dostoievski.

Vale a pena assistir o filme também pelas imagens de São Petersburgo e seus arredores. A cidade é linda o ano todo, mas no inverno tem suas peculiaridades. As locações foram feitas: no Palácio de Inverno (sede do governo czarista e atualmente o Museu Hermitage); no Palácio de Mármore (às margens do Rio Neva); na Fortaleza de Pedro e Paulo (presídio destinado aos revolucionários, dentre eles: Dostoievski, Máximo Gorki, Lyudmila Stal, Leon Trotsky, Alexander Ulyanov (irmão de Lênin); na Estação Ferroviária Vitebsky; Palácio Gatchina, Palácio Sheremetev, Palácio Yusupov (ao lado do Rio Moika, palácio onde ocorreu o assassinato de Rasputin); Museu de Artes Aplicadas de Stieglitz, dentre outros.

Sugestão:

Para contextualizar melhor o filme, assista a série: “Os últimos czares” (2019), também da Netflix.

Serviço:

Filme: Cidade de Gelo (2021) – 2h16min

Título em russo: Serebyanye Komki

Título em inglês: The Silver Skates

Direção: Mikhail Lockshin.

 

Francisco José Nunes é Mestre em Ciências Sociais – PUC-SP; Graduado em Filosofia; Professor na Faculdade Paulista de Comunicação – FPAC. Visitou São Petersburgo em novembro de 2017, durante as comemorações do Centenário da Revolução Russa). Fotos do autor.

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