Construir Resistência
modernidade

Revisitando a Semana de Arte Moderna

Por Sonia Castro Lopes

A Semana de Arte Moderna ocorrida em São Paulo há exatamente um século tem sido considerada o momento em que o modernismo irrompeu no plano cultural, uma espécie de episódio fundador do qual participaram artistas plásticos, compositores e homens de letras que, influenciados pela vanguarda europeia, buscavam uma cultura genuinamente nacional. Ao propor uma ruptura com o passado em prol de uma inovação cultural, o modernismo buscava explorar as raízes da nacionalidade brasileira dentro de um sentimento de modernidade de certa forma contraditório, uma vez que mesclava o cosmopolitismo da vanguarda europeia (Cubismo, Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo) com o nacional. No dizer de Daniel Pécaut (1), “uma modernidade ideológica e irônica (…) mas que representa, sobretudo, uma opção pelo nacional”. O Modernismo mostrou, ainda, a indissociabilidade entre o planos político e cultural, pois raros foram os participantes da Semana que não se alinharam a manifestações nacionalistas, fosse um nacionalismo do tipo mais conservador ou outro de contornos mais progressistas.

Entretanto, torna-se necessário compreender o modernismo em perspectiva histórica, levando-se em conta suas diferentes formas e expressões. Na verdade, meio século antes da Semana paulista, considerada como o marco do modernismo brasileiro, alguns “sinais de modernidade” já podiam ser percebidos em várias regiões do país, especialmente no movimento literário protagonizado por intelectuais que se tornaram conhecidos como a “geração de 1870.” Esse movimento, iniciado na Faculdade de Direito de Recife e liderado por Tobias Barreto, alcançou projeção nacional e pretendia romper com a ideia vigente na época de que o Brasil era portador de uma “cultura atrasada” e uma “inferioridade étnica”.  Essa geração de intelectuais do nordeste defendia elementos da brasilidade que foram retomadas pelos modernistas de São Paulo, como foi o caso de Mário de Andrade em sua pesquisa etnográfica sobre a música e folclore visivelmente baseada na metodologia do “recenseamento da cultura brasileira” feito por Silvio Romero ainda no século 19, como aponta a historiadora Mônica Velloso. (2)

O modernismo não aconteceu num repente, ele foi sendo elaborado ao longo do tempo e nem sempre a historiografia se preocupou em estabelecer essa  continuidade entre o pensamento  da geração de 1870 e a de 1920. Para Velloso, prevaleceu apenas o discurso construído pelos modernistas paulistas, apagando-se outras memórias sobre o processo de construção do modernismo no Brasil. Não se pretende aqui desconsiderar a importância da influência do grupo paulista, mas seguindo as regras do fazer histórico, torna-se necessário relativizá-la e tentar recuperar outras manifestações da modernidade presentes na cultura brasileira, já que a história opera sempre por meio de uma relação dialética entre rupturas e continuidades.

Algumas análises críticas de Silviano Santiago (3) e Flora Sussekind (4) já discutiram a necessidade de se repensar o moderno como resultado de um processo histórico a partir do qual várias tradições dialogam. Tais estudos invocam a existência de uma “cultura do modernismo” que começa a se impor na virada para o século 20 e que vai até o final da primeira grande guerra (1918) em todo o país. No caso específico do Rio de Janeiro, as crônicas de Lima Barreto, as caricaturas de J. Carlos e a presença de revistas como O Malho, Fon Fon e Careta, entre outras, são exemplos de como era possível refletir sobre a construção da nacionalidade a partir do humor, da sátira e das observações sobre o cotidiano da cidade-capital.

No Rio, essa modernidade foi marcada pela exclusão dos pobres, já que o ideal civilizatório era privilégio de uma elite branca. As obras monumentais que transformaram a cidade suja e mal projetada numa metrópole à feição de Paris expulsaram para os subúrbios longínquos ou para as favelas os moradores de cortiços que habitavam os bairros centrais, próximos aos locais de trabalho. Por outro lado, como centro político-administrativo, a cidade absorvia a diversidade oriunda de várias regiões brasileiras constituindo-se em polo irradiador de culturas. A identificação dos intelectuais com a cultura das ruas, com os espaços de sociabilidade – os cafés, clubes, livrarias -, com a música de Chiquinha Gonzaga, Donga, Sinhô e Pixinguinha entre outros tantos compositores, com personagens como o malandro, a mulata, o imigrante – que substituíram o índio idealizado do século 19 -, compuseram um mosaico cultural que se revelou fundamental para a construção de uma identidade típica da modernidade carioca.

Não se procura aqui contestar o protagonismo paulista, muito menos acirrar a rivalidade do eixo Rio-São Paulo, mas entende-se que é preciso relativizar o discurso consolidado e colocar em debate a formação de uma nacionalidade forjada desde o século 19 e que propiciou o desenvolvimento do processo de modernização do país como um todo. A importância de intelectuais como Mario de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Manuel Bandeira, Villa Lobos e de toda a geração de 1920 que protagonizou a Semana será sempre reconhecida, mas não se pode negar a solução de continuidade com movimentos que a antecederam em vários pontos do país. A busca da brasilidade e da identidade nacional é o traço que liga a geração de 20 com as que a antecederam.

É fato que com a Semana de 22 o nacionalismo assumiu maior importância no bojo do movimento modernista e isso pode ser percebido através do antagonismo de duas de suas vertentes: o grupo antropofágico que sucedeu ao antigo Pau-Brasil, cujo nacionalismo assumiu feição exótica, através de um caminho que iria buscar as “fontes emocionais” rompendo com a história importada e erudita e afirmando que não poderia haver compromisso econômico, político ou social com a sociedade estabelecida (linha de Oswald de Andrade) e o movimento verde-amarelo, mais inclinado à política, por acreditar que as reformas deveriam ser feitas dentro da ordem e através de instituições tradicionais (linha de Plínio Salgado e Menotti Del Picchia, entre outros). Depois de 1930, o primeiro grupo acabou por engajar-se politicamente à esquerda e o segundo à direita e a  visão verde-amarela serviu de modelo ao ideário autoritário que se estabeleceu com o governo Vargas, especialmente durante o período do Estado Novo.

Assim, entre as décadas de 20 e 30  do século passado essa nova geração de intelectuais descobriu e tornou pública sua conexão com a política vislumbrando o lugar que naquele momento poderia ocupar dentro da nação. Ainda que a  brasilidade, ideia condutora do movimento, não possa ser entendida de forma homogênea – haja vista as múltiplas  interpretações do nacionalismo expressas nos manifestos aqui referenciados –  ela serviu de base para a construção do Brasil Moderno.

 

Notas da autora

(1)PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil – entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.

(2) VELLOSO, Mônica Pimenta. O modernismo e a questão nacional. In FERREIRA. Jorge & DELGADO, Lucília Neves. O Brasil Republicano – o tempo do liberalismo excludente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

(3)SANTIAGO, Silviano. A permanência do discurso da tradição no modernismo. In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

(4) SUSSEKIND, Flora. O figurino e a forja. In: Sobre o pré-modernismo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988.

Foto: Reprodução da tela ABAPORU, de Tarsila do Amaral. A palavra, de origem indígena significa homem (aba) que come (poru). Trata-se de uma representação do movimento antropofágico referindo-se ao homem que se alimenta de culturas.

 

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