Retórica da intransigência: do politicamente correto ao lugar de fala (parte I)

Ciência Política
Por Antonio Soares
Esse texto destoa do espírito satírico que animam minhas crônicas no QUARENTENA NEWS. Bolsonaro em geral se tornou um tema dominante para colunistas, chargistas, cronistas e analistas sociais pelo caráter espetacular, grotesco e extemporâneo de seu comportamento na presidência. Este não será um artigo para falar do canhestro presidente. Embora o tema do artigo se relacione com a retórica que esse personagem adotou durante a campanha eleitoral e a manteve no exercício do poder atraindo uma horda de insatisfeitos com as mudanças sociais ocorridas nas últimas quatro décadas. A política desse governo é a tentativa insana de voltar no tempo.
O texto em tela é a primeira parte do desenvolvimento do argumento que pretendo mapear para pensarmos as noções do politicamente correto do “mimimi”, do lugar de fala, do cancelamento e outras palavras-força derivadas de nossa gramática moral e política que anima o debate em nosso cotidiano. Observo que algumas dessas noções são acionadas, seja pela retórica conservadora ou progressista, como argumentos genéricos, externos e polarizados que revelam mais os valores e as ideologias subjacentes ao arsenal argumentativo dos grupos do que os objetos em debate. Não tratarei dessas noções na Parte I, o debate mais específico sobre tais noções será apresentado na próxima semana. O artigo de hoje se concentra em apresentar brevemente os tipos de retóricas intransigentes dos conservadores e suas possíveis expansões aos progressistas. Acredito que o leitor poderá ir realizando um exercício analítico de nossos atuais debates em vários campos da política e relembrar querelas passadas nas quais tais argumentos foram acionados para justificar posições.
Albert Hirschman** (1915-2912), economista e pensador perspicaz sobre economia política e ideologia política, escreveu o clássico ensaio “Retórica da Intransigência: perversidade, futilidade, ameaça” (1992)***. Nessa obra ele analisa os mecanismos acionados pela retórica conservadora ao longo de 200 anos – incluí os dispositivos do pensamento conservador utilizados para tentar frear ou ironizar grandes mudanças históricas como a Revolução Francesa, o direito à cidadania civil, o sufrágio universal e o WelfareState. Convido o leitor a buscar essa leitura, pois, aqui não terei espaço para apresentar uma resenha detalhada desse brilhante texto. Minha intenção aqui é descrever, de forma sintética, a anatomia de sua tese central sobre retórica da intransigência que é sempre acionada nos momentos de grandes ou pequenas transformações culturais, políticas e sociais pelo pensamento conservador.
Sua análise é simples, econômica, erudita e lógica. Duas qualidades da argumentação capturam o leitor: a) fornece inteligibilidade sobre a natureza dos argumentos conservadores. Pois, a argumentação intransigente, ao procurar desqualificar ou frear mudanças, mistura medos, interesses, manutenção de privilégios e falta de empatia com aqueles que poderão ser beneficiados com as transformações em curso; b) apresenta uma tipologia que se assemelha aos debates cotidianos que travamos diante de incertezas na tomada de decisão individual e/ou coletiva. Ao final do livro, Hirschman acaba por descobrir, como bônus de seu investimento teórico, que os progressistas, por vezes, também utilizam argumentos semelhantes aos conservadores com o sinal trocado.
Hirschman apresenta três tipos de argumentos acionados pelo pensamento conservador em momentos de conflitos sociais e lutas por transformação. O argumento da PERVERSIDADE (ou efeitos perversos), da FUTILIDADE e da AMEAÇA. Tais argumentos são acionados com ironia, sarcasmo ou como profecia dos perigos que envolvem as transformações em curso.
O argumento da PERVERSIDADE trata de desqualificar as propostas ou tendências à transformação social pautadas em distribuição econômica e/ou em reconhecimento de direitos. Eles indicam que esses ganhos “apontados” pelas reformas ou transformações sociais poderão ter efeitos contrários aos pretendidos. Esse exercício profético é atraente pelo fato de se aproximar de adágios como, por exemplo, “de bem intencionados o inferno está cheio”. Além disso, há toda uma tradição sociológica que tem na noção “efeitos perversos” um eixo de análise para explicar os efeitos não-intencionais das ações humanas em interação. Todavia, a sociologia quando demonstra os efeitos perversos (contra finalidades) faz esse percurso de reconstrução das ações em interação de indivíduos e/ou instituições após os eventos ocorridos. A retórica conservadora, ao contrário, profere previsões, supostamente lógicas, com a intenção de desqualificar ou frear as mudanças em curso. O conservador sempre toma essa perceptiva de forma irônica e observa o mundo do “alto da montanha”.
Lembremos que o Bolsa Família, um dos maiores programas de distribuição de renda do mundo, foi sempre tratado pela retórica da perversidade. Esse foi um programa formulado com a intenção de dar mínimas condições de sobrevivência às famílias que viviam abaixo da linha da pobreza, solicitando como contrapartida que as crianças frequentassem a escola. Cansamos de ouvir reclamações de nossos vizinhos de classe média que o Bolsa família, ao invés de dar condições para as famílias se tornarem autônomas e ingressarem no mercado de trabalho, estimularia a preguiça e o descontrole da natalidade entre os pobres. Essas afirmações são realizadas a despeito dos dados demográficos, da falta de empregos com proteção social, das condições locais e desiguais entre as regiões e cidades brasileiras e da falta de qualificação e escolaridade dos beneficiados pelo programa. Esse é velho argumento do pensamento conservador que não está só no Brasil.
O argumento da FUTILIDADE indica que as propostas de mudanças ou o curso delas em nada alterarão a realidade ou as condições de vida. As mudanças seriam, como se diz popularmente, apenas maquiagem. Sempre ouvimos aquela máxima, “vamos mudar tudo para permanecer como tudo está”. Esse argumento é acionado com bastante ironia quando as pessoas diante de novas propostas, sejam numa empresa, na escola ou em outras instituições, sussurram no ouvido dos mais próximos: “já vi esse filme”. Esse tipo de argumento é outra forma de desqualificar as transformações e reformas e de criar mecanismos de resistência ou de não adesão as propostas de mudança.
O argumento da AMEAÇA é aquele que tenta mobilizar as pessoas pelo medo ao profetizar que as tentativas de mudança colocarão em risco aquilo que foi conquistado a duras penas. O pensamento conservador, quando produz esse tipo de argumentação, não se coloca claramente contra as mudanças, apenas alardeia que elas devem ser feitas de forma suave e lenta (nem sempre é assim) para não colocar em risco o que foi conquistado. Esse argumento pode surgir como fala supostamente ponderada na construção da política ou como alarme dos riscos iminentes.
Hirschman lembra que esse foi um tipo de argumento acionado quando as sufragistas lutavam para ampliar o direito de participação da mulher na vida política, mas os conservadores alertavam para o risco de retrocesso e perda das conquistas do sufrágio universal conquistado, ainda que fosse restrito aos homens. Nas eleições de 2018 a campanha bolsonarista insistiu e ainda insiste no risco de o Brasil virar comunista. Isso é quase uma piada, mas arregimenta incautos repetidores dessa estupidez.
Hirschman, ao fim de sua argumentação, faz uma ressalva importante, como antecipei, e tenta alguns desenvolvimentos para indiciar que: “Os “reacionários” não têm o monopólio da retórica simplista, peremptória e intransigente. É provável que seus equivalentes “progressistas” se deem tão bem quanto eles nesse campo, e um livro parecido com este poderia ser escrito sobre os principais argumentos e posições retóricas que esse pessoal vem assumindo ao longo dos dois últimos séculos na defesa de seu legado” (p. 125). Assim, ele apresenta de forma sintética como se dariam as oposições entre pensamento conservador e progressista a partir da ação e da inação:
a) Reacionário: A ação pretendida trará resultados desastrosos; (Perversidade)
Progressista: Não realizar a ação pretendida trará resultados desastrosos;
b) Reacionário: A nova reforma porá em perigo a anterior; (Ameaça)
Progressista: A nova e a velha reformas reforçarão uma à outra.
c) Reacionário: A ação pretendida tenta mudar características estruturais permanentes (leis) da ordem social; está, portanto, fadada a ser inteiramente ineficaz, fútil; (Futilidade)
Progressista: A ação pretendida apoia-se em poderosas forças históricas que já estão “em marcha”; opor-se a elas seria completamente fútil (p.138).
Podemos observar que na argumentação de Hirschman o pensamento conservador luta pela manutenção, pela inação, enquanto o pensamento progressista pela ação. Todavia, ele alerta que ambos os campos tratam suas profecias como certas, as quais seriam inteiramente iminentes e inevitáveis.
Os conservadores no poder tentam mover o ponteiro do relógio do tempo para trás e acionam ameaça como argumento para sequestrar direitos previstos na construção do um estado de bem estar social. No caso brasileiro, nosso WelfareState se ele, de fato, existiu foi apenas para as camadas privilegiadas. Por exemplo, funcionários públicos, parlamentares, militares, corpo do judiciário e civis de grandes empresas privadas tiveram um sistema de previdência que garantiria uma aposentadoria tranquila, bem estar e salários dignos durante a vida ativa para essas corporações. A maior parte da população foi privada desses direitos e benefícios. Mas lembremos da Reforma da Previdência (2019) que sequestrou os poucos direitos adquiridos pela maior parte da população trabalhadora e reduziu alguns dos direitos das classes privilegiadas, com exceção das corporações militares e do judiciário. O que importa é o ministro Paulo Guedes usou e abusou da tese da ameaça ou do risco iminente, endossado pelo arrependido Rodrigo Maia, quando dizia que se a reforma não fosse feita que não haveria dinheiro para pagar ninguém.
Para finalizar essa primeira parte do artigo, quero enfatizar que as retóricas da intransigência estão presentes no nosso dia a dia. Tentarei na próxima semana demonstrar como a acusação do politicamente correto ou do “mimimi” expressam a face de um tipo de argumentação conservadora que ironiza e reflete o mal estar com as mudanças culturais e sociais em curso ou mesmo a expressão da saudade do mundo que não existe mais. A acusação do politicamente correto é acionada inclusive por progressistas. Noutra direção, também tratarei a noção de “lugar de fala”, a partir de outras dicas de Hirschman, para pensar como a intransigência progressista se apresenta quando acredita que a história e o devir histórico estão do seu lado. Como essa noção se reveste, por vezes, de autoridade moral e legitima que dispensa o debate público.
NOTAS DO AUTOR:
***A retórica da intransigência: perversidade, futilidade, ameaça / Albert O. Hirschman: Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Antonio Soares é professor-titular da UFRJ
O artigo foi originalmente publicado na página Quarentena News. O conteúdo aqui reproduzido é de responsabilidade do autor.

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