Por Carlos Monteiro
” Veja, ilustre passageiro,/o belo tipo faceiro/que o senhor tem ao seu lado./No entanto, acredite/Quase morreu de bronquite/Salvou-o o Rum Creosotado”. Era a ‘sanca’ e o cartazete dos reclames nos bondes da Cidade Maravilhosa. Lembra do ‘Taioba’? Histórias antigas povoam nossa mente, sem, necessariamente, tenhamo-las vivido plenamente ou, sequer, sermos contemporâneos a elas. A história nos traz os fatos por meio dos, tão importantes, livros, pelos mais velhos, imensos em existência e conhecimento e pelas reminiscências.
A do Rum Creosotado é uma delas. Lembro-me vagamente deste reclame nos bondes cariocas que, povoaram meu dia a dia por muitos anos e ainda estão vivos em mim, pois, nascido e criado em Santa Teresa, esse meio de transporte que, marcou a história da cidade, ainda se faz presente. Outro cartaz que marcou minha infância foi da “Emulsão Scot”, quem não lembra do famoso óleo de fígado de bacalhau. O anúncio, cujo conteúdo mostrava um pescador com um enorme peixe às costas, apregoava os benefícios do fortificante. E tome colheradas e mais colheradas daquele creme branco de gosto terrivelmente forte. São as tais lembranças afetivas que, no caso, são olfativas e mal gustativas. Praticamente o mesmo gosto das cápsulas de ‘Ômega 3’ quando estouram na boca.
“O bonde era divertido, fresquinho e com gente de todos os tipos. Mas peguei pouco, logo mudaram para o ônibus elétrico”, contou-me, certa feita, uma amiga querida. Transporte preferido de Machado de Assis, rendeu um artigo delicioso: “Regra Para Uso dos Bondes”. Publicado, originalmente, na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em quatro de julho de 1883, tinha dez artigos divertidíssimos, formando regras para uso do transporte coletivo. Bilac, quando não ouvia as estrelas, criava crônicas saborosas sobre o transporte urbano sobre trilhos.
Já em 1963, o governador Carlos Lacerda, comprou-os decretando, ali, sua extinção. Em dezembro de 1967 realizou sua derradeira viagem na linha Alto da Boa Vista. Em 1971 foi a vez de ser sumariamente desativado, no mês de abril, o Trólebus, da CTC – Companhia de Transportes Coletivos um dos mais eloquentes cabides de emprego que o Rio já teve, foi promovido como substituto do bonde; não deu certo! Infestavam as ruas atrapalhando o trânsito, o sábado, o público e o tráfego. Alguns, ainda, trafegavam na contramão, uma maluquice só.
Quando faltava energia era um ‘Deus nos acuda’. Não havia meio de se movimentar. E como faltava à época. Era tanto o rarear de luz, que o carioca pândego do jeito que é, mudou a letra de “Cidade Maravilhosa”, de André Filho, criando um chiste maldoso, porém, bastante real na ocasião, baseado numa marchinha do Carnaval de 1954: “…Rio de Janeiro/Cidade que me seduz/De dia falta água/De noite falta luz…”. Na versão, com todo escárnio possível, ficou assim: “Cidade Maravilhosa/Cheia de buracos mil/De dia falta água/De noite falta energia…”. Noutra parte exortava a beleza das praias cariocas ironizando, de forma veemente, a sujeira pela qual a cidade ‘atravessava’. “…Praia de Ramos para o turista inocente/Basta então um pequeno mergulho/Para sair com um ca…ão entre os dentes…” Que horror! E como faltava tudo. Recém ex-Capital Federal, padecia a Guanabara.
O bonde de Santa ficou para contar história. Conta-a até os dias atuais sob uma saraivada de críticas dos moradores do bucólico bairro carioca. Perdeu a graça, perdeu o charme, mas manteve o elã. Não há turista que se encante ao cruzar os Arcos da Lapa sobre os trilhos em um transporte ecologicamente correto e cheio de histórias para contar, umas ótimas como as figuras que habitaram esse universo de estribos e balaústres, outras tristes quando havia alguma queda de passageiro e a derradeira e trágica quando houve o descarrilamento que ceifou muitas vidas. Não foi o primeiro, mas abriu a discussão se deveria continuar ou não sua centenária operação.
Histórias são vividas e vívidas em nossa memória. Não, necessariamente vivenciadas diretamente. Muitas vezes são histórias conhecidas de outros Carnavais. Passadas de pai para filho. Nossos interlocutores põem-se a rir, perguntam-nos do quão detalhes são sabidos e como sabemo-los. Põem-se a rir. Isso está no quão vívida é nossa memória. Somos vividos? Somos experientes? Não importa, muitas vezes é melhor ‘gastar’ palavras, mas, muito melhor é fazer poemas com elas, não o do famoso Rum Creosotado, mas, um que fale de amor, que conte a história de um amor e, por que não, amor pelo Rio.
Idades são tempos em movimento; cronológica, física, mental, espiritual… idade não importa. A importância está na maneira e forma que conduzimos a história de nossa vida. Histórias podem ser da Carochinha ou tão velhas quanto a Sé de Braga. Podem ser afetivas ou imaginárias. São histórias, momentos inesquecíveis que se tornaram permanentes em nossas mentes, porandubas eternais.
Afinal, para bom entendedor, meia palavra basta. Basta? Há histórias em que o pingo se torna letra, a letra ‘A’ que há e tem meu nome. YHVH. “…Entre as estrelas sou a lua… entre os animais selvagens sou o leão… dos peixes eu sou o tubarão…. de todas as criações eu sou o início e também o fim e também o meio…”. Para Jung bastaria. “O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável.”.
Ah, hoje em dia, temos o VLT, mas aí é outra história. Vou ali fotografar a alvorada carioca e já volto. O Sol me espera; depois do amanhecer eu te conto!
Não vamos perder o bonde da história.
*Frase contida nos espaços vagos para publicidade nos antigos bondes.
Carlos Monteiro é jornalista e fotógrafo