Por Silvio Queiroz
A sete semanas do primeiro turno das eleições no Brasil, os acontecimentos nos EUA, ainda como desdobramento da conturbada votação de 2020, recomendam a atenção dos atores políticos no país para o impacto de ações e reações em torno da condução do processo. Na semana que termina, causou respostas intensas, ainda que variadas em direção e intensidade, a operação do FBI (a polícia federal dos EUA) na mansão de veraneio de Donald Trump em Mar-a-Lago, na Flórida.
Em resumo, os agentes buscavam documentos oficiais sigilosos que o ex-presidente teria levado consigo ao deixar a Casa Branca, em janeiro de 2021. A incursão, porém, trouxe uma vez mais à tona as relações incertas, por vezes obscuras, entre Trump e os organismos de Estado com os quais manteve relação funcional e institucional durante os quatro anos de mandato.
O incidente tem interesse e possível implicação, por aqui, desde logo por conta de uma tomada de posição que aproxima Bolsonaro e Trump: assim como fez o amigo e aliado norte-americano, em 2020, o presidente brasileiro sustenta agora uma campanha sistemática de contestação ao sistema eleitoral e sugere a opção de não reconhecer como legítimo um resultado adverso.
Os movimentos dos últimos dias oferecem ao Brasil a chance de buscar e produzir remédios capazes de minorar o chamado “efeito Orloff”. Na antiga propaganda de uma marca de bebida, o personagem no balcão de bar ouve de um “sósia” a recomendação para que escolha a bebida levando em conta o perigo da ressaca: “Eu sou você amanhã”, diz o slogan da campanha.
Sob suspeita
Em especial, pesa na apreciação dos paralelos entre os acontecimentos lá e cá a intervenção do FBI na propriedade do ex-presidente, executada nos últimos dias. Ela se soma às investigações em curso sobre a participação de Trump na tentativa de seus partidários de invadir o Congresso no dia em que este ratificou o resultado das urnas, em 6 de janeiro de 2021.
Conclamados pelo (até então) presidente, manifestantes armados invadiram o Capitólio e entraram em choque com a segurança, com saldo de ao menos cinco mortos, entre invasores e policiais. O inquérito aberto no Congresso ouviu depoimentos e reuniu evidências que apontam para a responsabilidade direta de Trump nos confrontos – inclusive por ter estimulado os seguidores a levar às últimas consequèncias o desafio ao resultado eleitoral – por fim, ratificado pelos senadores.
Duas semanas depois da frustrada “insurreição”, Trump deixou a Casa Branca e deu lugar ao desafiante Joe Biden, do Partido Democrata.
Quanto vale o show?
Pela ótica do derrotado e de seus correligionários, a contestação ativa à voz das urnas, inclusive por meios violentos, serviu – e serve ainda hoje – a uma estratégia de revanche. Em novembro, os norte-americanos renovarão a Câmara dos Deputados (inteira) e o Senado (em parte). As chamadas “eleições legislativas de metade de mandato” são um termômetro para a popularidade do presidente e de seu partido com vistas à sucessão.
Até aqui, nas primárias em que os partidos escolhem os candidatos, o Partido Republicano assistiu a confrontos entre seguidores do ex-presidente e aqueles que entendem que seu estilo político “antiestablishment” causa mais danos do que dividendos à direita conservadora. Ambos os campos, porém, apostam nos insucessos do governo Biden para retomar a maioria no Congresso – se possível, em ambas as casas.
A tradição política da democracia que costuma ser tomada como modelo para as Américas e o mundo consagra uma figura chamada no jargão de “pato manco”: o presidente que, embora detentor de mandato, carece de apoio político-parlamentar para governar, efetivamente.
Pero no mucho
No Brasil, o sistema político não contempla uma situação semelhante, embora traga embutida a possiblidade de o ocupante do Planalto se ver forçado a negociar, desde o primeiro dia no cargo, a composição de uma maioria capaz de apoiar suas iniciativas no Congresso. O mecanismo atende por nomes como “governabilidade” ou “presidencialismo de coalizão”.
Na prática, escancara uma equação para a qual, ao fim de quase 150 anos de república, o país continua a procurar solução. A rigor, segundo a Constituição de 1988, o presidente, eleito pelo voto universal, direto e secreto, é o chefe de Estado e de governo. Na prática, tem de submeter seu programa às conveniências de quem comanda o Congresso. No mais das vezes, alguém que tem uma agenda própria, distinta daquela traçada pelo Executivo.
Desde o fim do regime militar, quando o Planalto se impunha na Praça dos Três Poderes e na Esplanada, o Brasil vive sob um sistema “presidencialista, pero no mucho”. Na ausência de limites e atribuições claras para cada um dos três Poderes, o fantasma do ato encenado no Capitólio como ópera bufa assombra desde os primeiros dias o vencedor da disputa eleitoral de outubro.
Silvio Queiroz é jornalista, colunista do jornal Correio Brasiliense