Construir Resistência
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Racismo se combate na escola, é dever de casa para a vida inteira

Por Sonia Castro Lopes

“As professoras de Educação Infantil trazem na pele as marcas dos saberes emancipatórios. Saberes forjados na luta, construídos coletivamente na resistência, cujas práticas pedagógicas norteadas por uma educação das relações étnico-raciais intencionam a construção de uma sociedade mais igualitária, justa e democrática. Sensibilidade, olhar diferenciado, postura política e identitária, para o outro, com o outro, no ser e reconhecer o outro como a mim mesmo, professora de Educação Infantil da Rede Municipal do Rio de Janeiro, presente!” (Joana Oscar)

Joana Elisa Oscar é uma moça que possui a “estranha mania de ter fé na vida.” Que luta como uma garota, preta, professora da Rede Municipal e altamente comprometida com a agenda da educação pública, democrática, laica, justa, equânime e antirracista, como se autodefine em rede social. Foi convidada no início deste ano pelo Secretário Municipal de Educação, Renan Ferreirinha (PSB-RJ), para ocupar o cargo de coordenadora da Gerência de Relações Étnico-Raciais da SME. O objetivo dessa iniciativa será articular e fomentar políticas públicas educacionais para fortalecer a identidade racial e combater o racismo. Há luz no fim do túnel!

Nascida em São Gonçalo há 39 anos, mas residindo no Rio “a vida toda”, Joana nos contou sobre sua origem humilde em uma família que prezava a educação acima de tudo. Seus pais, a primeira geração da família a cursar o ensino superior, resolveram matriculá-la em uma escola particular para cursar as séries iniciais do ensino fundamental, onde ela e seus irmãos sentiam-se “invisíveis” por serem praticamente as únicas crianças negras em suas turmas. Com as dificuldades econômicas geradas no início dos anos 90 pelo Plano Collor e o consequente desemprego do pai, foram transferidas para uma escola pública municipal, onde Joana cursou a segunda fase do ensino fundamental, da quinta à oitava série. Ali encontrou crianças de várias camadas sociais e diversos tons de pele, mas majoritariamente pretas. Situada próxima à comunidade da Mangueira, o projeto pedagógico da EM General Humberto de Souza Mello valorizava a diversidade, em especial a cultura negra, embora o fizesse de forma intuitiva, sem maiores intencionalidades a respeito de uma pauta que agora emerge com força total. A vivência nesse espaço foi determinante para a escolha da profissão e a menina que pretendia ser jornalista acabou optando pelo magistério.

A necessidade de uma formação escolar que lhe permitisse o rápido ingresso no mercado de trabalho levou-a ao Instituto de Educação onde cursaria o ensino normal. Nessa época a LDBEN já preconizava que a formação dos professores de todos os níveis de ensino se realizasse preferencialmente em nível superior. Essa mesma lei criava os Cursos Normais Superiores (CNSs) para formar docentes que atuariam na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental. Admitia, porém, como formação mínima o curso normal médio que Joana já concluíra. Assim, prestou concurso para a Prefeitura e iniciou sua trajetória profissional como professora de educação básica em 2001. Paralelamente ao CNS Joana cursava Letras na UFRJ. Eu a conheci nessa época. Bonita, alta, falante, inteligente, líder por natureza. Lecionei história, história da educação e pesquisa educacional para sua turma e, segundo me disse, contribuí, juntamente com outros colegas, para o seu crescimento. Todos que me conhecem sabem que vivo para a pesquisa e para meus alunos. Dou menos importância aos pares da academia, embora saiba, como afirmou Pierre Bourdieu, que “é preciso saber transitar no campo.”

E Joana soube. Abraçou a questão racial em 2012 ao cursar a pós-graduação do CEFET/RJ, cujo programa contempla a “educação das relações étnico-raciais.” Intuitivamente já trabalhava essas questões com os alunos, mas o curso aumentou seu repertório teórico que, aliado à prática docente, transformou-a numa pesquisadora mais consciente. Passou a questionar os currículos da educação básica, a história narrada nos livros didáticos, tão diferente daquela que experimentou ao longo da vida. Ali ela tomou consciência da exclusão de personagens históricos que, por serem negros, acabaram invisíveis. Nesse momento iniciou o processo de identificação, assumiu-se negra, “tornou-se” negra e dali para o mestrado na UFRJ foi um pulo. Paralelamente, teve oportunidade de viver uma experiência de gestão na rede municipal de ensino quando estruturou seu projeto para o mestrado cujo objeto de pesquisa contemplou a implementação da Lei nº 10.639/2003 que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira na educação básica, além de estabelecer o dia 20 de novembro como o dia da consciência negra no calendário escolar.

Muito se tem escrito sobre essa lei, mas Joana foi além ao apresentar e discutir a prática pedagógica dos professores de educação infantil em interface com a política pública municipal na perspectiva de uma educação antirracista. Sua pesquisa buscou identificar e desmistificar questões relativas ao racismo na primeira infância, apontando o campo escolar  como meio de manutenção de práticas discriminatórias que influenciam a construção da identidade da criança negra. A memória veio em seu auxílio, sua história de vida foi crucial para que entendesse o verdadeiro sentido da pesquisa que desenvolvia. Analisou como os professores de Educação Infantil concebem, percebem e traduzem as orientações legais em suas práticas pedagógicas. Examinou os projetos pedagógicos anuais (PPA) do ano de 2015 apresentados ao “Prêmio Anual de qualidade da Educação”, concedido aos servidores lotados e em exercício nas unidades da Rede Pública de Ensino Municipal do Rio de Janeiro que prestam atendimento exclusivo na educação infantil e no ensino especial. Entrevistou as professoras de educação infantil das unidades escolares cujos projetos foram analisados e o resultado da pesquisa mostrou que as orientações da SME quanto à temática étnico-racial são sensivelmente percebidas pelo campo, mas não necessariamente se configuram como reflexo efetivo de implementação da Lei 10/639/03. Seu estudo propõe avanços no entendimento da questão porque põe em diálogo teoria e prática, coisa rara na academia. Nessa perspectiva, a pesquisa se abre para o cotidiano escolar – o espaço da sala de aula- de onde extrai os problemas, reflete sobre eles e apresenta caminhos a serem percorridos.

Joana encerra esse ano difícil com muita esperança, apostando na relação dialética de mudanças/permanências, na valorização da história e no protagonismo dos profissionais e alunos da rede municipal de ensino. O desafio é enorme, mas quem a conhece sabe que  dará conta. Voa, menina, vai ser doutora pela UFRJ, vai se tornar uma intelectual orgânica, no puro sentido que Gramsci conferiu a essa categoria, e tenta combater “por dentro” esse racismo estrutural que tanto mencionam, mas ninguém explica. Você saberá explicá-lo porque a luta da menina preta garantiu seu “lugar de fala.”

 

* Joana Elisa Oscar é professora da rede municipal do Rio de Janeiro e atualmente coordena a Gerência de Relações Étnico-Raciais da SME/RJ. Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação da UFRJ. A entrevista foi concedida em 3 de janeiro de 2021 e a matéria foi originalmente publicada na página Quarentena News. 

Fotos:  Acervo particular de Joana Elisa Oscar/Facebook

 

 

 

 

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