Foto: Joédson Alves/Agência Brasil.

A aprovação com folga nesta terça-feira, 30, na Câmara dos Deputados, do projeto de lei do marco temporal, catástrofe para os povos originários e para o meio ambiente, escancara, de uma vez por todas, dois problemas sérios e conexos para o governo Lula e para o Brasil.

O primeiro é a ficção de que o governo de união e reconstrução tem ou terá base no Congresso Nacional para unir e reconstruir o país após sete anos de destruição por Michel Temer e Jair Bolsonaro.

O segundo, talvez mais grave, é o fato de que pela primeira vez não é nem será problema para a erva mais daninha enraizada no Congresso, a bancada ruralista, formar, sozinha, maiorias simples ou absolutas não apenas na Câmara, mas no Senado também, para aprovação ou rejeição de projetos de lei, resoluções, decretos legislativos e medidas provisórias.

O marco temporal foi aprovado nesta terça com os votos de 283 dos 513 deputados federais. Desses 283 votos favoráveis ao projeto, 99, ou 34%, foram de deputados de partidos com ministros no governo Lula. Contribuíram para a aprovação do marco temporal 48 deputados do União Brasil, de uma bancada de 59; 25 do PSD, de uma bancada de 43; 22 do MDB, de uma bancada de 42; três do PSB, de uma bancada de 15; e 1 do PDT, de uma bancada de 18 deputados.

Em março, a ‘base’ de Lula já tinha contribuído com 42 assinaturas para a criação da CPI do MST – 25% do total. Foram 28 assinaturas do União Brasil, sete do PSD, seis do MDB e uma do PDT. A ‘base’ de Lula é quem está fazendo passar a boiada reloaded do desmatamento.

Não é por acaso que a ilusão de uma “base do governo” se dissipe especialmente rápido diante de matérias fundiárias, indígenas ou ambientais. Os números absoluto e relativo de deputados que votaram “sim” ao marco temporal, 283, ou 55% da Câmara, são muito próximos dos números absoluto e relativo da composição atual da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) na casa. Com 300 deputados associados, a FPA, vulgo bancada ruralista, corresponde hoje a 58% da composição total da Câmara.

Trata-se de um poder inédito. A bancada ruralista, que historicamente vota em bloco em favor dos latifúndios, contra os povos indígenas e contra o meio ambiente, nunca tinha reunido 50% dos deputados mais um. Agora, na 57ª Legislatura, congrega 50% mais muitos, engrossada pela eleição de uma bancada recorde do PL em 2022, o que levou à FPA deputados neófitos, como Maurício do Vôlei (PL-MG), Mário Frias (PL-SP) e Nikolas Ferreira (PL-MG), que não são grandes donos de terras nem de bois, mas que têm dono: Jair Bolsonaro.

No fim da legislatura passada, por exemplo, a FPA tinha 241 deputados e equivalia a 47% da Câmara. A bancada ruralista compunha 45% da casa na época da 55ª Legislatura, quando os deputados federais votaram pelo impeachment de Dilma Rousseff e por manter Michel Temer após o caso Joesley Batista. Entre os deputados da FPA, 87% votaram para tirar Dilma e 72% votaram para manter Temer, mostrando que o potencial de terra arrasada que a bancada ruralista representa vai além da defesa estrita das pautas da pecuária extensiva e dos latifúndios monocultores borrifados com veneno.

Hoje, mesmo subtraindo dos 300 do agro os 27 deputados somados do PT, PSB, PDT, PCdoB e PV que aparecem na composição atual da FPA, e que podem representar dissenso, ainda assim 52% da Câmara é composta por ruralistas de partidos de oposição ou que são “independentes” ao governo Lula, ainda que tenham cargos no primeiro escalão da administração federal.

No Senado, o mesmo drama: como na Câmara, 58% dos senadores em exercício integram hoje a bancada ruralista – um crescimento de 20% em relação aos 39 senadores ruralistas da legislatura anterior. Mesmo descontando os cinco senadores do PSB, PT ou PDT que compõem a FPA no Senado, ainda assim os ruralistas são maioria absoluta (52%, de novo como na Câmara) entre os senadores.

Todos os cinco ex-ministros de Bolsonaro eleitos para o Senado em 2022 integram a FPA: Tereza Cristina (PL-MS), Damares Alves (Republicanos-DF), Marcos Pontes (PL-SP), Sérgio Moro (União-PR) e Rogério Marinho (PL-RN). Nove unidades da federação têm todos os seus três senadores associados à FPA, entre eles todos os três do Centro-Oeste agrobolsonarista: Acre, Roraima, Tocantins, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Sergipe, Paraná e Santa Catarina.

Que governo democrático, que floresta, que indígena resistem a isso?