Por Beatriz Herkenhoff
Um dos melhores filmes que assisti em 2020
Gosto de filmes que me viram pelo avesso.
O que quero dizer com essa expressão? Quando um filme faz pensar, desestrutura minhas defesas, convicções, crenças e limites. Toca minha alma e convida a repensar a vida de forma mais profunda.
Alguns filmes são tão impactante em suas denúncias que é como se dessem um soco no meu estômago.
Vou indicar três filmes que me viraram pelo avesso: Agnus Dei (2016), Julieta (2016) e O Milagre da Cela 7(2019). Os dois primeiros, assisti no Cine Jardins, Vitória, ES (antes da pandemia). O último está entre os melhores filmes que vi em 2020 (Netflix).
Se você ainda não assistiu Agnus Dei e Julieta, avalie se é o melhor momento. Cada um sabe dos seus limites em relação a temas mais pesados. Entretanto, ultrapassar os nossos limites de vez em quando é preciso.
Faço o alerta porque tem filmes que amei, mas, que não veria nesse momento. A realidade já está muito dura, precisamos de filmes que mesmo tristes, tragam esperança.
Por isso, indico para o momento atual, o filme Milagre da Cela 7. É denso e intenso em suas denúncias, mostra a crueldade humana, mas, é carregado de esperança.
Precisamos de um olhar delicado e esperançoso no momento. Sentimentos necessários para enfrentarmos os desafios atuais.

O Milagre da Cela 7 (2019) é um filme turco envolvente, sensível e belo. Apesar de pesado, resgata a esperança, o lado bom do ser humano, a luz que há em cada um. Retrata a dureza da vida em contraste com a inocência. Cada diálogo, cada cena, cada acontecimento são significativos e tocantes.
São muitos os temas abordados: inocência, pureza, amor sem limites, perdão, empatia, solidariedade, loucura, culpa, injustiça, soberba, prepotência, superioridade entre as classes, manipulação pelo poder, bullying, preconceito, brutalidade humana e policial. Amizades que florescem em ambiente duro e frio. Dores sendo curadas. Metáforas religiosas referentes à redenção, pecados, culpa, amor ao próximo são abordados de modo sutil e sensível.
Somos transportados para o mundo de Memo (um pai solteiro, com deficiência intelectual) que vive com sua filha Ova e a avó (que cuida dos dois). É muito forte e emocionante o amor entre pai, filha e avó, expresso nos diálogos, na cumplicidade, na identidade, no cuidado, na proteção e no compromisso com a verdade.
A pureza, inocência e bondade, presentes na criança e no pai, envolve e cativa a todos. Humaniza pessoas duras e aparentemente insensíveis.
Agnus Dei (2016) é impactante, forte, denso, intenso, questionador, belo, sensível e profundo. Levanta questões como: até que ponto a crueldade humana (a guerra, o estupro, a violência) podem nos destruir e roubar a fé?
Existem saídas para vivências tão desestruturantes? Até onde podemos ir em nome da fé e da preservação de princípios e valores?
Um filme que exige reflexões profundas, digestão da alma e da psiquê. Para potencializar toda a sua riqueza somos convidados a desvendar cada cena, cada mensagem.
Julieta (2016), do cineasta Pedro Almodovar é denso, intenso, pesado, forte, envolvente, questionador, que vai se revelando lentamente. Como se fosse um thriller, sem crimes, sem assassinatos.
Eu amo Almodovar (alguns odeiam). Seus filmes sempre me viram pelo avesso. Ele tem a capacidade de nos transportar para o centro das emoções do personagem. Mais do que isso, nós entramos na tela, e o filme entra em nós e nos leva a pensar nele durante vários dias.O diretor trabalha lindamente o erotismo, a luminosidade de corpos que se amam, que precisam se encontrar para partilhar com intensidade seus desejos. Simultaneamente, aborda de forma delicada e sensível a curta distância entre o amor e a dor, o luto e a depressão. O poder destruidor e avassalador da culpa e do silêncio diante dela.
Muitos são os questionamentos: como o silêncio nos impede de elaborar processos e juntar os cacos que se espalham quando algo se quebra em nossa vida? Como as lembranças do passado nos acorrentam e impedem de viver um presente com mais intensidade?
Três filmes com temas muito distintos, mas, que fazem pensar que o lado direito tem o seu avesso.
Beatriz Herkenhoff é cinéfila e testemunha da importância da terceira arte nesses tempos de #isolamentosocial. Doutora em serviço social pela PUC São Paulo, professora aposentada da Universidade Federal do Espírito Santo.
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Eu não vejo a hora de tudo isso virar um livro.
Mais uma vez, parabéns Beatriz.