Por Sonia Castro Lopes
Estudantes, professores e especialistas em educação sentiram certo alívio diante do tema da redação proposta pelo ENEM deste ano. Sob o título Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil, o exame manteve a tradição de apresentar assuntos de cunho social para serem discutidos pelos candidatos. Este, por sinal, é um tema delicado que trata diretamente de direitos humanos – o direito de existir e adquirir a possibilidade de tornar-se cidadão em um país onde cerca de 3 milhões de brasileiros sequer possuem certidão de nascimento. Os “invisíveis”, como são chamados, não conseguem obter documentos como RG, CPF, carteira profissional, título eleitoral nem podem ser usuários de programas públicos, pois não têm como se cadastrar e, portanto, receber qualquer benefício por parte do governo.
O conteúdo da prova de ontem (21) abarcou dois eixos temáticos linguagens, códigos e suas tecnologias e redação (língua portuguesa, literatura, língua estrangeira, artes, educação física e tecnologias da informação e comunicação) e ciências humanas e suas tecnologias (história, geografia, sociologia e filosofia) com um total de 90 questões de múltipla escolha que versaram sobre racismo, escravidão, população indígena e erotização da mulher. Estranhamente, houve pouquíssima menção à política brasileira recente, exceção feita a uma questão cujo enunciado remetia à canção de Zé Ramalho, Admirável gado novo para que os alunos refletissem sobre a passividade da população no contexto da ditadura civil-militar (a música é de 1979, portanto, em pleno governo Geisel). Mas foram esquecidas questões candentes como pandemia, fome e desemprego, males que tanto afetam a população do país há quase dois anos.
A expectativa era de que a prova tivesse “a cara do governo” como anunciou Bolsonaro na semana passada, mas a ameaça, de fato, não se concretizou, apesar das notícias de exoneração de 37 funcionários responsáveis pela elaboração e logística da aplicação do exame em todo o país. Houve, também, denúncias de assédio moral por parte do presidente do Inep, Danilo Dupas, bem como de interferência do governo federal na elaboração das provas, o que teria provocado a censura de mais de 20 questões. O fato é que esse exame é elaborado dentro de rígidos parâmetros estatísticos por profissionais bastante competentes. As questões são selecionadas e pré-testadas com uma amostra de estudantes para avaliar seu nível de dificuldade e testar o conhecimento dos alunos. Só depois de testadas, elas integram o banco de itens, daí a dificuldade de simplesmente retirar ou alterar questões para que estas passem a ter “a cara do governo.” Contudo, algumas ausências foram sentidas, como as referências ao golpe de 64 e à ditadura que se abateu sobre o Brasil por mais de vinte anos. Orientações nesse sentido ocorreram desde o início do governo Bolsonaro para que se substituísse o termo golpe por revolução e ditadura por regime militar.
Apesar de mais uma vez o ministro da educação, Milton Ribeiro, ter exprimido sua satisfação com o andamento do exame que parece ter tido poucas intercorrências, além de um baixo número de abstenções (26,4%), o Enem deste ano atraiu pouco mais de 3 milhões de jovens e, como não poderia deixar de ser, ficaram de fora justamente os mais pobres, assim como uma maioria de negros e indígenas. Há sempre uma justificativa para as falhas do MEC. Este ano o ministro atribuiu à pandemia e aos profissionais da educação que relutaram em retornar às aulas presenciais. Porém, nada disse sobre a medida que tentou impor de não validar a isenção de inscrição de alunos pobres que faltaram ao Enem do ano passado em virtude da pandemia. Se essa decisão não fosse anulada pelo STF, o número de inscritos teria sido ainda bem menor.
A grande verdade é que este governo não quer democratizar o ensino superior quando afirma que “a universidade não deve ser para todos” e propõe cursos técnicos de qualidade duvidosa alegando que o Brasil já possui “muitos doutores.” Ao contrário dos governos anteriores que adotaram o Enem como requisito para ingresso nas universidades federais, bem como ampliaram o número de vagas nessas instituições, o atual privilegia políticas que só atingem as classes mais elevadas como as escolas cívico-militares e o ensino doméstico. Tanto é verdade que cortou pela metade as verbas destinadas à publicidade do Enem deste ano, reduzindo em 50% os investimentos feitos no ano passado.
Com pouquíssima divulgação, ameaças e denúncias de todo tipo e uma crise institucional nunca vista no órgão responsável pela elaboração e logística do Enem, só temos a lamentar a situação de tantos jovens brasileiros que anseiam prosseguir seus estudos e foram excluídos por uma política educacional equivocada e perversa. Como já dizia o grande antropólogo, educador e político Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto.”
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