Moradias transitórias ocupam área no Bom Retiro, centro de São Paulo, onde resíduos são tratados; gestão nega contaminação
Por Mariana Zylberkan – Folha de S.Paulo
Um terreno da prefeitura onde funciona uma estação de tratamento de lixo, entre outros serviços municipais, no Bom Retiro, na região central de São Paulo, passou a abrigar um conjunto de casas modulares voltadas a moradores de rua.
O conjunto foi inaugurado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) na última quarta (27).
A uma distância de cerca de 200 metros das moradias transitórias funciona a estação de transbordo Ponte Pequena, onde o lixo coletado por caminhões que rodam pelas zonas central, norte e oeste da cidade é tratado antes de ser encaminhado para os aterros.
O espaço onde os contêineres foram instalados era ocupado, até abril deste ano, pelo estacionamento da unidade Armênia do Detran, deslocada para outro endereço para dar espaço ao projeto de acolhimento.
Cada unidade foi projetada para receber até quatro pessoas a partir de setembro. O custo é de R$ 24,5 milhões, segundo a prefeitura.
As unidades devem receber famílias com mulheres como as responsáveis, com crianças e adolescentes entre os membros e que estejam em situação de rua num período de 6 a 24 meses.
A gestão municipal vai utilizar as informações do CadÚnico (base de dados do governo federal que armazena informações sobre renda familiar) e dados cadastrais próprios, como o SISRUA, a fim de estabelecer critérios para o acolhimento.
No projeto da Vila Reencontro, nome dado pela prefeitura às moradias transitórias, está prevista a instalação de uma área de convivência rente ao muro que separa o terreno da estação de tratamento de lixo.
Em nota, a prefeitura negou a proximidade e afirmou que a Vila Reencontro está sendo instalada na extremidade oposta ao local onde o lixo é recolhido, informação que não condiz com o desenho original do projeto.
O endereço da estação de transbordo consta na lista de solos contaminados da Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) sob o aviso de conter combustíveis automotivos, metais e outras substâncias tóxicas. Há a recomendação de restrição do uso de água subterrânea no local.
Apesar de dividir o mesmo terreno com a estação, e o mesmo registro de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), o local onde foram instaladas as casas modulares tem entrada por outra numeração na avenida do Estado. Em relação a esse endereço, a Cetesb afirmou, em nota, não ter identificado nenhum passivo ambiental “até o momento”.
Em nota, a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social disse que o endereço da Vila Reencontro, no número 900 da avenida do Estado, não consta na lista de locais contaminados da Cetesb e da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente.
O local foi escolhido por concentrar grande demanda de população de rua —12.851 foram contabilizadas na região da Sé, de acordo com a secretaria.
No mesmo terreno, funcionam uma base do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e a Inspetoria Regional da Sé da GCM (Guarda Civil Metropolitana).
Moradores da região ouvidos pela reportagem reconhecem o problema do mau cheiro vindo da estação de transbordo, causado, na maior parte, pela demora em esvaziar os caminhões de lixo, que formam filas no pátio. “O cheiro era horrível, tinha que fechar as janelas”, diz a aposentada Raquel Worek que morou na rua Matarazzo, próxima à estação, por anos.
Outra moradora, a empresária Kelli Storalli, disse que o cheiro ruim é eventual. De acordo com Saul Nahmias, do Conseg (Conselho Comunitário de Segurança) Bom Retiro, o problema já foi pior no bairro, mas ainda se faz presente quando há algum defeito no equipamento usado para conter o odor.
A reportagem esteve no local na última sexta-feira (29) e constatou o intenso movimento de caminhões, mas o odor estava controlado. No entorno da Vila Reencontro, não há residências, apenas endereços comerciais e industriais.
Procurada, a prefeitura disse que a estação de transbordo não emite odor “porque foi modernizada” e “nem alterações químicas que possam oferecer riscos à saúde pública”.
A proximidade das casas modulares com a estação de transbordo foi tema de discussão em reunião recente de representantes de movimentos sociais. “Já pedimos uma reunião com o secretário em que vamos cobrar explicações. Não podem tratar os moradores de rua dessa maneira”, diz Robson Mendonça, presidente do Movimento Estadual da População de Rua.
Ele questiona também o prazo máximo de um ano em que os moradores de rua vão poder ocupar as casas modulares. “Os sem-teto não são produtos com prazo de validade que, quando acaba, são jogados fora. Esse programa não pode ser chamado de moradia.”
Para o padre Julio Lancelotti, da pastoral do Povo de Rua, a proximidade das casas com a estação é preocupante. “Ali é uma região inóspita, vai segregar os ocupantes e transformar o lugar em um gueto.”
O projeto das casas modulares foi a resposta dada pelo secretário de Assistência e Desenvolvimento Social, Carlos Bezerra, diante do aumento de 31% da população de rua na capital paulista, segundo Censo divulgado em janeiro.
O projeto foi apresentado pelo secretário no mesmo dia em que o Censo da população de rua foi divulgado. A ideia foi concebida a partir da constatação do aumento de famílias morando nas ruas em comparação com o levantamento anterior.
ESTAÇÃO FOI INVESTIGADA
A estação de transbordo Ponte Pequena foi alvo de fiscalização da Promotoria de Meio Ambiente em julho de 2016 no âmbito de um inquérito civil movido por moradores contrários à instalação de uma estação semelhante no Parque Anhanguera, na zona oeste.
Como o método de tratamento de afluentes usado seria o mesmo, a Promotoria requisitou um laudo de engenharia sobre o funcionamento do equipamento na Ponte Pequena.
No documento, o perito escreveu que “constatou a percepção de odor fora dos limites do empreendimento”. Ele citou também que o odor foi sentido, inclusive, no prédio do Denarc, a delegacia de narcóticos, localizada atrás da estação, “onde investigadores apontaram que as percepções de odor oriunda da estação de transbordo de lixo são mais frequentes e intensas no verão”.
O laudo do Ministério Público apontou também o registro de 13 reclamações de vizinhos sobre o odor no primeiro semestre daquele ano na Agência Ambiental de Pinheiros.
Matéria publicada originalmente no link abaixo da Folha de S.Paulo